FOLHA DE S PAULO
Ao que tudo indica, a trilha sonora cheia de estrondos e alaridos vai tomar conta do cinema
O CALOR insuportável que tem feito no Rio, desde janeiro, me levou a frequentar os cinemas mais do que costumo. As salas estão sempre lotadas, particularmente se o filme é "Avatar", sucesso de bilheteria no mundo inteiro. Pelo que afirmavam os críticos de cinema, teria ido vê-lo, ainda que o verão fosse ameno.
Não sei dizer ao certo se gostei ou não do filme, pois a verdade é que fui arrastado para dentro de um mundo fantástico e perturbador. Confesso que, diferentemente de outros, não me agrada sentir-me atordoado, fora de meu controle, quase incapacitado de refletir sobre o que estou vendo ou ouvindo. Por isso mesmo, as drogas nunca me atraíram.
Mas mergulhei naquele espetáculo em 3D, ora fascinado pelas flores esvoaçantes que pareciam roçar-me o rosto, ora perplexo diante daquelas aves gigantescas, cavalgadas por homens e mulheres azuis, de inusitada estatura.
Pude avaliar o que consegue fazer a nova tecnologia cinematográfica, cujas imagens surpreendentes tornam-se plausíveis e espantosamente reais. Impossível negar-se a tal espetáculo arrebatador. Isso no que se refere às imagens e aos efeitos sonoros. Já a história contada é banal, mera repetição do que mostravam os velhos filmes de Hollywood, envolvendo o colonizador branco e os índios pele-vermelha.
O filme é contraditório ao mostrar a vitória da cultura mítica, primitiva, de Pandora, sobre a mais avançada tecnologia, quando ele mesmo, como cinema, é uma exaltação da civilização tecnológica.
Depois dessa viagem atordoante do "Avatar", decidi descansar a alma e os ouvidos vendo o filme de Sherlock Holmes, numa nova versão, de Guy Ritchie. Se esperava relaxar e me divertir é que, na minha ingenuidade, pensava reencontrar o detetive fleumático e reflexivo, que conhecia de outra época e de outros filmes. Nada de histeria e estridência.
Pode o leitor então avaliar o susto que levei quando o filme começou, alvejando-me com bordoadas acústicas atordoantes. E me perguntava que diabo era aquilo, enquanto as carruagens passavam quase por cima de mim, estrondeando a cada trambolhão. E não só elas, mas tudo o mais: a porta ao bater, os passos na escada, o chute numa lata. O Sherlock que eu conhecia, de rosto bem barbeado, cachimbo e gestos medidos, era agora, nesta versão, um sujeito mal vestido, fedido, de barbas por fazer, e campeão de luta livre, capaz de receber e também desferir golpes brutais.
A vontade que tive foi de cair fora do cinema, já que me haviam transformado num saco de pancadas, mas me contive ao lembrar que, lá fora, o que me esperava era uma tarde vazia de sábado e um calor de 50 graus à sombra.
Fiquei. E assim, entre atropelos e sustos, assisti ao filme até o fim, mal entendendo como foi que aquele novo Sherlock, mais chegado aos murros que à reflexão, desvendara as artimanhas do bandido, que parecia um Drácula, retornado do túmulo e contra o qual os mortais humanos nada poderiam.
E, desse modo, contrariando os antigos filmes de Sherlock Holmes, em vez de chegar ao fim da película com um sorriso nos lábios, respirei aliviado por me ver livre do atropelo a que fora submetido durante quase duas horas. Vou guardar o nome desse diretor, falei comigo mesmo, para nunca mais cair em armadilha semelhante.
Não sei, porém, se vai adiantar muito, já que, ao que tudo indica, a trilha sonora de estrondos e alaridos vai tomar conta do cinema daqui para a frente. Digo isto porque, mesmo antes desses filmes, já vinha me sentindo agredido pela altura do som nos cinemas, especialmente nos minutos iniciais da sessão, quando se apresentam as próximas películas. As cenas, além de fulminantes como raios, são acompanhadas de ruídos de assustadora estridência, obrigando-me a me encolher na poltrona, como se uma bomba acabasse de explodir a poucos metros de mim.
Daqui para diante, o cinema será isso? Acabou-se aquele tipo de filme que nos fazia penetrar nas intenções dos personagens, viver com eles o momento de hesitação ou encantamento? O cinema não é mais para nos fazer pensar e nos comover com os sentimentos dos personagens. Sentimento é coisa antiga. Os personagens apenas agem, chutam, espancam, trucidam, destroem, num mundo em que tudo é violência e brutalidade.
E aí me lembrei que, em "Avatar", um terráqueo muda de lado e vira guerreiro da tribo primitiva de Pandora. Vai ver que é isso o que esse novo cinema pretende: levar-nos de volta à vida selvagem.
Entrevista:O Estado inteligente
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