A (triste) história da floresta brasileira,
dos delirantes anos 70 até hoje, pelas
lentes do fotógrafo Pedro Martinelli
Thaís Oyama
"Povos da floresta" O caubói paranaense morador de Matupá (MT), onde vivia a tribo isolada fotografada por Martinelli em 1970; à direita, índio do Xingu, pintado com as cores do Vasco |
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Gente x Mato é o quarto livro de Pedro Martinelli sobre a Amazônia – e é também o mais amargo. Desde que pisou na região pela primeira vez – quando tinha 20 anos e participou de uma expedição dos irmãos sertanistas Villas-Boas em busca de uma tribo de índios isolados –, a floresta nunca mais saiu da sua mira. Martinelli cobriu guerras, ganhou prêmios, fotografou lindas mulheres, foi a Copas e Olimpíadas. Na volta, sempre rumava para lá. Chegou a comprar um barco, na década de 90, e por três anos morou na selva – navegando, fotografando e cozinhando, outra coisa que adora fazer. Hoje, aos 58 anos, ainda vibra quando descreve o prazer de comer um jaraqui recém-pescado na beira do rio, mas suas lentes estão mais sombrias – e a Amazônia que emerge delas não tem filtro nem retoque. Nesta reportagem, além de imagens do livro, o depoimento de Martinelli a VEJA.
Política no Xingu Índios da aldeia Kuikuro, em 2000. Um deles usa um "santinho" eleitoral como enfeite. À direita, homem carrega cabeça de búfalo na Ilha de Marajó |
As coisas não mudam
"Na primeira vez em que fui ao mercado de Belém, o Ver-o-Peso, a maré tinha subido e um lixo de cheiro insuportável boiava na entrada do lugar. Isso foi há trinta anos e eu nunca mais parei de ir lá. Pois há trinta anos eu continuo vendo a mesma cena: quando a maré sobe, o mesmo lixo bóia do mesmo jeito no mesmo lugar. Em Manaus é igual: há décadas, o esgoto é jogado diretamente no Rio Negro, na frente da cidade. A diferença é que essa sujeira está andando cada vez mais para dentro: hoje, as comunidades do interior são todas um lixo só – é pacotinho de batata frita e embalagem de alumínio por todo canto. Então, não adianta o sujeito que mora em São Paulo ficar falando de emissão de carbono, sustentabilidade, manejo sustentável. Na prática, as coisas não mudam."
TV movida a tartaruga
"Regatão é o sujeito que percorre a região num barco que é uma espécie de empório ambulante: vem de Manaus carregado de sandália havaiana, fumo, açúcar, sal, óleo diesel, uns remedinhos. Quando o regatão aporta, o caboclo que não tem dinheiro para comprar a mercadoria faz o quê? Faz escambo – com peixe, caça, couro de onça, tartaruga. Tem gente que pega dez tartarugas, faz um furinho em cada casco, passa um barbante, amarra todas numa árvore e deixa lá por uns quinze dias, à espera do regatão. Quando o barco chega, elas estão vivinhas – e viram moeda. Uma tartaruga vale 5 reais, que é o preço de 1 litro de óleo diesel na Amazônia. Duas horas de TV consomem 1 litro de óleo diesel, ou seja, uma tartaruga. Cinco horas de TV valem uma paca. Para começar a discutir sustentabilidade, tem de discutir qual é a alternativa para o caboclo comprar o diesel dele e continuar a ver televisão sem vender tartaruga nem matar paca."
Golfe na selva |
Turismo na Amazônia
"O turismo na Amazônia não existe. Existe o turismo internacional, mas turismo brasileiro não tem. E não tem por dois motivos: o primeiro é que é mais fácil você ir para a Europa do que ir para Manaus. Quando você planeja uma viagem para a Europa, sabe qual será o seu custo: quanto vai custar o táxi, o trem, o almoço. Você consegue ver pela internet a foto do quarto onde vai ficar. Na Amazônia, não tem nada disso. O turista viaja no escuro – e o risco de ele se decepcionar, de o colocarem para pescar piranha, é muito grande. O segundo motivo é que muitos brasileiros têm uma expectativa errada em relação à Amazônia. Querem ir para ver onça, arara, vitória-régia e índio pelado. O problema é que na Amazônia você não vê bicho nunca: pode navegar dias sem enxergar nem um passarinho. E também não vai ver índio, a não ser que vá para o Xingu. Seria muito melhor se o sujeito fosse para lá a fim de ver o que é um rio com 8 quilômetros de largura, navegar por esse rio e ter uma idéia das dimensões do país que ele habita."
Índio X mata |
Tecnologia e destruição
"Antigamente, o madeireiro de mogno ouvia falar que determinada região tinha muita madeira. Só que, para retirar essa madeira, ele tinha de colocar trinta caboclos dentro do mato para fazer um inventário – e saber se a quantidade de pés que havia lá compensava a entrada dele. Só esse processo levava uns dez dias. Hoje, é muito mais rápido. O madeireiro espera a florada do mogno, sobrevoa a região e, guiado pela florada, marca a localização das árvores com o GPS. Então, põe um trator no barco e segue pelo rio até chegar aos pontos marcados. Mete o trator no mato e arranca tudo numa noite."
O caboclo e o índio
"Quer ver um caboclo ficar louco da vida com você? Chegue para uma criancinha que está no colo da mãe e diga: ‘Que gracinha, parece um indiozinho’. Pronto, acabou. Caboclo odeia índio."
"Aproveite, fature, enriqueça" |
Êxtase
"Quando eu era criança, morava em Santo André (no ABC paulista) e ia com meu pai caçar na Serra do Mar. Para mim, a floresta mais linda do mundo é a Mata Atlântica, mais do que a Amazônia. Mas a Amazônia é o lugar em que eu ando desde 1970 e, até hoje, tenho momentos de êxtase lá. Como quando passo na curva de um rio e vejo uma castanheira. Uma castanheira no meio de uma mata nativa é uma maravilha: aquela copa imensa, imponente, saindo por cima de tudo, avançando para cima da água. Você fica hipnotizado, é de perder o ar."
O jaraqui
"Quando eu penso na Amazônia, eu não penso do ponto de vista de um ambientalista, que eu não sou. Não penso nela como ‘pulmão do mundo’, não penso no buraco de ozônio, nada disso. Eu penso é no jaraqui. O jaraqui é um peixinho que dá em todo canto lá, é o que custa mais barato e é maravilhoso. Comer um jaraqui fresquinho, nascido num rio limpo, que corre no meio de uma mata nativa não tem nada a ver com comer um salmão que fica vermelho porque ingeriu betacaroteno, ou uma truta salmonada, criada em cativeiro, que encheram de ração para ficar cor-de-rosa. Comer esse jaraqui na beira do lago, fazer um fogo com a lenha do mato, defumá-lo com a fumaça das folhas desse mato... Não tem alta gastronomia que se compare. Então, para mim, preservar o rio e a mata significa preservar isso aí. E a minha sensação de perda é quando eu penso que o jaraqui vai acabar, o tambaqui vai acabar, o tucunaré de 8 quilos vai acabar e o brasileiro perdeu a chance de conhecer tudo isso."