Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 09, 2006

VEJA Entrevista: Dieter Zetsche


A toda a velocidade

O presidente mundial da DaimlerChrysler
diz que falta pouco para as fábricas
de carros do Ocidente conseguirem
enfrentar os asiáticos com sucesso


Ronaldo França

Juergen Schwarz/Getty Images

"Não é uma exclusividade japonesa ter disciplina ou processos de produção perfeitos. Uma empresa alemã pode fazer isso"

Aos 53 anos, o engenheiro Dieter Zetsche já inscreveu seu nome na galeria dos superexecutivos da indústria automobilística. Quando a Chrysler, a porção americana do grupo DaimlerChrysler, estava quase quebrada, no início desta década, ele a consertou. No ano passado, foi a Mercedes que se viu em apuros – e ele foi chamado de volta à Alemanha, mas para se tornar o presidente mundial do grupo DaimlerChrysler. Foi direto ao topo da organização de 370 000 funcionários e faturamento anual de 150 bilhões de euros, equivalentes a 428 bilhões de reais. Paralelamente, tornou-se o responsável direto pela divisão de carros Mercedes, a jóia da coroa. Sua tarefa agora é atravessar a crise que está corroendo todas as gigantes do setor e, de quebra, dar um polimento na estrela da Mercedes, arranhada por um gigantesco recall de automóveis, no ano passado. Não bastasse tanta adrenalina, Zetsche gosta de velocidade. Quando pode, acelera até os 300 quilômetros por hora. "Nunca faria isso se não estivesse em um carro seguro, o que um Mercedes é por definição", diz. Há duas semanas, esteve no Brasil, onde trabalhou vinte anos atrás, como chefe de engenharia da Mercedes. Veio para as comemorações dos cinqüenta anos da montadora no país. Na fábrica de São Bernardo do Campo, concedeu a seguinte entrevista a VEJA.

Veja – Como as empresas americanas e européias podem sair da crise atual e virar o jogo contra as marcas asiáticas?
Zetsche – As melhores empresas asiáticas focaram com precisão no negócio. Fizeram o dever de casa, buscaram a excelência operacional, boa qualidade, e os consumidores perceberam isso. É o caso da Toyota, uma empresa muito poderosa, de muito sucesso atualmente. Vários concorrentes, como nós, não conseguiram manter o foco, vacilando em alguns momentos. Especialmente no que diz respeito à excelência operacional. Tivemos de fazer agora o que os concorrentes já haviam feito antes. Mas não é uma exclusividade japonesa ter disciplina ou processos produtivos perfeitos. Uma empresa alemã certamente pode fazer o mesmo. Vamos alcançá-los – e isso não vai demorar muito.

Veja – A saída está em acelerar o processo de fusões?
Zetsche – É possível, mas eu não espero grandes mudanças. Está se tornando cada vez mais complexa a tarefa de administrar essas empresas muito grandes. É mais difícil para os administradores conseguir transparência total, processos bem definidos, em um negócio global com muitas marcas e regras diferentes. É por isso que não vejo muitas companhias indo nessa direção. É possível que ocorram novas fusões, mas isso, provavelmente, acontecerá entre empresas menores tentando se defender no mercado juntando-se a uma família maior em busca de proteção. Por outro lado, veremos novas companhias surgir na competição global, especialmente da China e mais tarde da Índia.

Veja – Lee Iacocca salvou a Chrysler nos anos 80. O senhor salvou-a de novo há cinco anos. Agora, ela teve um prejuízo de 1,5 bilhão de dólares no terceiro trimestre deste ano. Tem conserto?
Zetsche – A Chrysler hoje é muito mais competitiva do que era há cinco ou seis anos, tanto em qualidade quanto em produtividade. Seus produtos têm qualidade e são vistos assim pelo mercado. Mas, ao mesmo tempo, a situação mudou. O preço do petróleo e da gasolina triplicou nos últimos três anos e isso mudou o comportamento dos consumidores de carros grandes. A Chrysler é muito forte nesse segmento. As melhorias na competitividade ainda não foram fortes o suficiente para enfrentar essas circunstâncias. Estamos atentos a isso. Mas o mercado mundial de automóveis só terá competição justa quando os países asiáticos deixarem suas moedas flutuar livremente. Eles não jogam pelas regras de mercado nesse particular e se beneficiam do câmbio para baratear seus carros. Esperamos que, com o tempo, os governos asiáticos parem com essa política cambial irreal. Quando isso acontecer, a vantagem dos carros asiáticos será reduzida e a concorrência vai ser mais justa.

Veja – A DaimlerChrysler anunciou um investimento global de 19 bilhões de euros até 2008. Quanto disso está reservado ao Brasil?
Zetsche – Já investimos muito no Brasil. Temos lançado caminhões modernos e estamos fazendo o mesmo com chassis para ônibus. Manteremos atualizados os modelos comerciais e decidimos lançar o novo Mercedes Classe C Sports Coupé em Juiz de Fora. Os carros serão destinados à exportação, o que obviamente exigirá novos investimentos. Então, seguiremos com nossa operação no Brasil muito competitiva, para que possamos garantir ou aumentar a nossa atual fatia de mercado. Hoje exportamos do Brasil para mais de quinze mercados. Seremos ainda melhores se o câmbio nos for mais favorável.

Veja – Qual será a próxima fronteira para a indústria automobilística?
Zetsche – A China é um mercado muito desafiador. Em poucos anos será o segundo maior mercado de automóveis, atrás apenas dos Estados Unidos. Mas a Índia está no mesmo caminho, apenas alguns poucos anos atrás da China. Tem quase a mesma população, 1,1 bilhão de habitantes, contra 1,3 bilhão da China. O número de pessoas que podem comprar um carro na Índia ainda é pequeno, mas a classe média daquele país está crescendo rapidamente. A Índia será o segundo mercado mais atraente, logo depois da China. Também estamos procurando parceiros para fabricar veículos pequenos, de padrão B, para vender nos Estados Unidos e em outros mercados. Começamos a conversar com os chineses em busca de uma parceria para esse projeto.

Veja – A imagem de qualidade da Mercedes-Benz foi afetada no início do ano passado por um recall (convocação de clientes para troca de peças defeituosas), um dos maiores da história da empresa no segmento de automóveis. Foi convocado mais de 1 milhão de proprietários dos modelos Classe E e Classe C. O que os levou a isso?
Zetsche – Não foi muito maior do que o de outras companhias, incluindo a Toyota, cujo recall no setor de luxo foi maior do que o nosso. Para a Mercedes foi um choque. Mas isso é passado.

Veja – Alguns analistas do setor afirmam que a empresa ainda não se recuperou totalmente dos danos à imagem...
Zetsche – Os carros atuais da Mercedes têm mais qualidade hoje do que os fabricados em qualquer período. Estamos trabalhando para tentar melhorá-los ainda mais. Levou algum tempo para que nos déssemos conta do que estava acontecendo, e é inegável que isso acabou afetando a marca. Agora os carros estão perfeitos novamente. Mesmo assim, algumas pessoas ainda se referem a esses problemas como se fossem atuais. É natural que demore um pouco para que percebam que o problema não existe mais. Vai levar ainda um ano ou dois até que o episódio seja totalmente esquecido.

Veja – Adiantou alguma coisa a famosa carta que o senhor escreveu aos executivos da companhia dizendo que não toleraria lutas políticas, jogos e intrigas?
Zetsche – Provavelmente no topo de todas as empresas existem mais jogos políticos e mais agendas pessoais do que seria ideal para os negócios. Na nossa empresa não seria diferente. Mas definitivamente não gosto disso. As pessoas precisam entender que não terão sucesso nessas empreitadas. O sucesso individual depende dos resultados de cada um, mas também da capacidade de trabalhar em equipe. Minha intenção foi deixar isso bem claro desde o começo. Por isso, defini as regras do jogo e, assim, cada um pôde concluir se seria capaz de segui-las.

Veja – Atribui-se aos problemas com a marca Mercedes-Benz a conquista da liderança de mercado pela BMW. Será possível alcançá-la outra vez?
Zetsche – A BMW vendeu mais unidades do que nós por algum tempo. Em outros meses, mais recentemente, nós vendemos mais. Até o fim do ano, a BMW deve estar novamente à frente. Isso não é decisivo para mim. Existem outros indicadores para medir o sucesso de uma companhia. Sempre estivemos à frente em faturamento. Se você perguntar pelo mundo qual é a melhor marca de carro, muito mais pessoas vão dizer que é a Mercedes. Obviamente passamos por momentos difíceis em rentabilidade. Tivemos até prejuízo no passado, mas estamos nos recuperando muito rápido. Em breve teremos uma rentabilidade melhor do que a da BMW.

Veja – Dizem que o senhor dirige carros tão ousadamente quanto dirige as empresas...
Zetsche – Adoro dirigir carros. Um benefício de ser o presidente mundial da DaimlerChrysler é que isso faz parte do meu trabalho. Freqüentemente vou aos nossos test-drives e aos dos concorrentes. Assim posso comparar e ver o que podemos melhorar e o que temos de melhor.

Veja – O senhor gosta de velocidade?
Zetsche – Isso depende muito de onde eu dirijo e do tipo de trânsito que enfrento, porque a segurança tem de ser a prioridade, não necessariamente para mim, mas para as outras pessoas. Mas gosto de dirigir em velocidade, gosto de descobrir quais são os limites do carro.

Veja – O senhor já dirigiu a mais de 200 quilômetros por hora?
Zetsche – Já dirigi mais rápido do que isso, mas nas Autobahn (auto-estradas alemãs sem limite de velocidade em alguns trechos). Se você quer saber mesmo, já cheguei a dirigir a quase 300 quilômetros por hora.

Veja – Nos test-drives dos concorrentes já encontrou algum carro que lhe deu vontade de ser o senhor o fabricante daquele modelo?
Zetsche – Claro que existem outras companhias que fabricam carros competitivos. Outro dia dirigi um Aston Martin Vantage (modelo esportivo fabricado pela Aston Martin, uma das marcas da Ford). É um carro muito bom. A meu ver o Aston é o melhor, depois dos Mercedes, é claro.

Veja – Qual foi o melhor Mercedes que o senhor dirigiu em sua vida?
Zetsche – O carro com o qual mais me diverti foi, e ainda é, o Mercedes 300 SL, fabricado de 1954 a 1957. Ainda é o meu favorito, o mais divertido de todos.

Veja – O brasileiro é apaixonado por carros. Em que outros países do mundo os carros são uma paixão nacional?
Zetsche – O Brasil é um desses lugares, com certeza. Na Itália, "la bella macchina" é cultuada. Nos Estados Unidos, de um lado você tem as pessoas que apenas querem o carro mais barato para ir do ponto A ao B, sem se molhar na chuva. De outro tem as pessoas que amam carros e através deles vão aos limites da racionalidade para expressar suas emoções. Os alemães também são grandes amantes de carros.

Veja – O trânsito nas maiores cidades do mundo caminha para o caos irreversível. Produzir mais e mais carros não ajuda em nada a resolver o problema, certo?
Zetsche – É preciso lembrar que um carro oferece ao indivíduo uma série de benefícios, como liberdade, mobilidade, individualidade e a chance de estar entre as suas próprias quatro paredes mesmo numa área repleta de gente, como um engarrafamento. Você tem o seu pequeno compartimento onde pode ouvir música, onde pode fazer o que quiser. Isso é algo muito valorizado pela maioria. Nada menos do que 57 milhões de pessoas por ano no mundo decidem investir uma quantia razoável para comprar um novo carro. É claro que, somados aos 570 milhões já existentes, os novos carros geram engarrafamentos crescentes, o que é um problema. Continuará sendo um problema mesmo quando os carros tiverem motores que não emitam gases danosos para o meio ambiente. Ou seja, não há como negar que isso é um desafio, e desafios precisam ser enfrentados.

Veja – A produção em massa de carros não poluentes é ainda uma realidade muito distante?
Zetsche – Estamos reduzindo a emissão de gases ao mínimo. Desenvolvemos uma nova tecnologia, chamada BlueTec, que reduz muito a emissão de gases nos motores. Existem também os biocombustíveis, uma coisa bem desenvolvida aqui no Brasil. Nós apoiamos essa solução plenamente. A própria planta que serve de insumo ao combustível, enquanto cresce, tanto absorve o gás carbônico quanto produz oxigênio. Como é basicamente um círculo fechado, representa pouca ameaça ao meio ambiente. O hidrogênio é outra fonte muito limpa. O problema é como produzir hidrogênio sem poluir.

Veja – Carlos Ghosn, presidente mundial da Renault-Nissan, é o único brasileiro entre os executivos no topo da indústria mundial de automóveis. Como o senhor o avalia?
Zetsche – Ghosn fez um excelente trabalho na Nissan no Japão. A companhia vivia uma situação muito crítica e hoje desfruta boa rentabilidade. Ele merece meus cumprimentos. Agora Ghosn tem a chance de mostrar que pode operar milagres similares com a Renault, na França. Só o futuro vai mostrar se isso é possível. Certamente ele é um dos mais respeitados executivos da indústria automobilística. Mas, pelo que sei, ele é libanês e foi apenas criado no Brasil...

Veja – Ele nasceu aqui e, mesmo tendo passado tanto tempo fora, para nós ele é brasileiro.
Zetsche – Se é assim, também sou. Trabalhei no Brasil e tenho uma filha que nasceu aqui. Então sou brasileiro também. Em pensamento.

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