Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, dezembro 05, 2006

A SALVAÇÃO DA HUMANIDADE

A SALVAÇÃO DA HUMANIDADE

Lycio Farias

- Minhas queridas almas. Desculpem-me ter interrompido seu descanso eterno, mas foi o próprio Senhor, Todo Poderoso, que me incumbiu de convocar esta reunião. Ele está preocupado com o mau uso que os humanos estão dando ao livre arbítrio, que lhes foi magnanimamente concedido. Como o seu poder é infinito, Ele poderia simplesmente cassar aquele dom e fazer todo mundo proceder corretamente. Isso, porém, seria uma solução simplista, não condizente com sua também infinita sabedoria, que foi a geradora da liberdade de que os humanos desfrutam, para fazerem o que mais lhes aprouver. Até se autodestruirem. Ele prefere que os senhores, que são o que de mais expressivo a humanidade produziu, estudem o problema e Lhe proponham uma solução. Como os senhores não vêm acompanhando a evolução do procedimento dos humanos, eu poderei atualizá-los sobre isso. Perguntem o que quiserem que eu responderei.

- Pois não, senhor Machado de Assis, pode falar.

- Primeiramente, eu queria um esclarecimento sobre os motivos de minha convocação para esta reunião, composta, conforme suas palavras, do que "de mais expressivo a humanidade produziu". Eu nunca fui incluído entre os verdadeiramente grandes da literatura universal. O que explica a escolha do meu nome?

- O senhor não foi incluído, como o expoente que verdadeiramente é, porque escreveu em português. Se sua língua fosse o grego, o latim, o francês, o inglês, ninguém o suplantaria. Mas aqui em cima, o que vale é o valor intrínseco do trabalho realizado, o veículo é irrelevante. Por isso o senhor foi convocado.

- Muito obrigado. Para poder me desincumbir da tarefa que o Senhor agora nos confiou, eu gostaria de duas informações preliminares: como anda a minha obra e como está a academia que eu fundei?

- Sua obra vai muito bem, sendo cada vez mais estudada e analisada, embora só pelos intelectuais. O comum dos mortais pouco a lê, porque o habito de leitura está desaparecendo. A maioria prefere a passividade da assistência de programas de televisão. Um outro problema é o da necessidade de se saber inglês para conhecer os resultados dos estudos e análises de que eu falei. Em português pouco existe de novo sobre a sua obra. Aliás, se as coisas continuarem no caminho em que estão indo, em pouco tempo só sobrarão, em português, os livros esotéricos e de auto-ajuda, do tipo "Como ganhar dinheiro sem fazer força". Sobre sua academia, eu prefiro nem falar. É melhor que o senhor mesmo veja o que lá existe hoje. Só lhe recomendo cuidado para não ser picado pelos marimbondos de fogo que, às vezes, invadem os salões daquela augusta assembléia.

- Grato pelas informações. Vou aprofundar o exame do problema e darei depois a minha opinião.

- Pode falar, senhor Mozart.

- Eu não tenho o problema do colega Machado de Assis. Eu sabia e ainda sei avaliar, muito bem, a magnitude dos dons com que o Criador me agraciou. Só o imbecil do Arcebispo Colloredo não sabia reconhecer o meu valor e me tratava como se eu fosse um serviçal ignorante. Meu consolo é que, como eu em vida já previa, ninguém mais sabe sequer que ele existiu. Toda a empáfia dele virou pó e minha glória é eterna. O que eu queria saber é como anda a sensibilidade musical dos humanos. Eles ainda vibram com as grandes obras?

- Sua pergunta é muito difícil de responder, porque agora a palavra música, além de designar o que o senhor e outros gênios do passado conheciam como tal, designa também uns sons estranhos, que nem sei como descrever para ouvidos sensíveis como os seus. Como poderia lhe explicar o que é "música dodecafônica" ou, mais difícil ainda, o que é um som "da pesada", do tipo rap, rock, punk, funk? Entretanto, respondendo literalmente à sua pergunta, eu lhe asseguro que o público ainda vibra (e como!) quando ouve música. Vibra mesmo que não queira, tal a intensidade dos decibéis que jorram, em catadupas, das caixas de som que amplificam os impulsos gerados pelos instrumentos elétricos.

- Não tenho a menor idéia do que possa ser rock, por exemplo, mas estou certo de que encontrarei a harmonia existente nessas novas manifestações do espírito humano. Se é música, só pode ser agradável aos ouvidos.

Ao escutar isso, o Arcanjo Miguel sussurrou no ouvido de Gabriel: "Você não acha mais prudente mandar o Beethoven?" Gabriel não entendeu a razão da preferência do companheiro e indagou: "O que você tem contra o Mozart?" "Nada, não, eu só receio que Nosso Senhor não ficará muito satisfeito se, como resultado dessa excursão, passarem a ser dois os gênios musicais surdos".

Voltando-se de novo para a audiência, Gabriel disse:

- Fale, por favor, senhor Miguelangelo.

- Eu gostaria de saber se o público ainda aprecia as obras que eu produzi, nos campos da pintura e da escultura, ou se não gosta mais do meu estilo.

- A resposta à sua indagação é paradoxal. O público permanece adorando as suas obras (e acorre aos milhões a Roma, para vê-las), mas não aprecia mais o seu estilo. Tanto que não se produz mais nada sequer parecido com o que o senhor fez. O gosto mudou a tal ponto, que até umas coisas difíceis de definir, chamadas "instalações", são encaradas como arte. Eu o aconselho ir vendo tudo com muita cautela, para não cometer alguma heresia. Por exemplo, se encontrar no salão de algum museu um mictório, desses de louça, de prender na parede, não urine dentro dele, pelo amor de Deus, pois pode ser a clássica Fountain, "produzida" por Marcel Duchamps, em 1917 (e que até hoje é cultuada). Na área da pintura, a cautela é também indispensável. Não critique nada, pois, na arte moderna, tudo que não for elogioso é considerado manifestação de ignorância. Hoje, qualquer coisa pode ser rotulada de arte e acabar pendurada nas paredes das galerias ou museus.

- Perdão, senhor arcanjo, eu acho que o senhor está exagerando. Não existem mais os críticos de arte, cuja função é separar o joio do trigo?

- Os críticos ainda existem, mas não têm mais coragem de dizer o que realmente pensam (salvo algumas raras exceções, mas estes não são levados a sério pela mídia).

- Perdão, novamente, senhor arcanjo, o que é mídia?

- É a verdadeira soberana do planeta. Ela faz e desfaz (sobretudo conceitos) a seu bel prazer, impunemente. Todo mundo tem mais medo dela do que o Diabo tinha (antigamente) da cruz.

- Obrigado, ficarei atento. Mas o senhor não explicou a origem dessa modificação, tão radical, que ocorreu na avaliação do mérito das pinturas.

- Tudo começou em fins do século dezenove. Os críticos daquela época não souberam avaliar a importância das inovações estéticas produzidas pelos impressionistas e não reconheceram qualidade nos trabalhos daqueles jovens pintores. Achavam que qualquer inovação era, necessariamente, ruim. O tempo se incumbiu de mostrar quão cegos eles eram. O problema foi que, a partir de então, os críticos não se atreveram mais a dizer que nem toda a inovação é meritória. Uma porcaria, por ser nova, não deixa de ser porcaria. Entretanto, ninguém mais ousa dizer isso em público. Todo mundo é paralisado pelo fantasma aterrador: "Remember os impressionistas"...

- Ainda acho que o senhor está exagerando. Não creio que tanta idiotice possa ter prevalecido.

- O senhor verá e tirará suas próprias conclusões. Mas tenha cuidado com a mídia, repito, até Miguelangelo pode ser tachado de ignorante em matéria artística.

- Prossigamos. Com a palavra o senhor Francisco de Assis.

- Minha primeira indagação é semelhante à do senhor Machado (também de Assis, mas que não é meu parente): por que eu fui chamado? Eu sou o mais humilde dos seguidores de Cristo. Ele próprio é que deveria estar aqui e não o vejo no recinto.

- Ele foi convocado, mas pediu dispensa ao Pai. Ele anda muito deprimido com o que vêm fazendo em seu nome. "Em nome do Senhor Jesus", as centenas de seitas, que hoje proliferam pelo mundo, sugam milhões de dólares do povo, com a maior desfaçatez. Isso, porém, não é tudo. Até na igreja que Ele fundou, estão acontecendo coisas estranhas. Os padres de maior sucesso não são mais os grandes pregadores ou os que divulgam a doutrina cristã pelo seu exemplo de vida, são os que pulam e berram nas igrejas, como se estivessem em um auditório de televisão. Uma lástima...

- Isso é triste, mas não é o mais importante. O que eu desejo saber é se ainda seguem os meus exemplos de humildade, de amor ao próximo, de amor até aos passarinhos.

- Ah, meu santo, nem queira saber o que andam fazendo naquele planeta azul. Os passarinhos estão ameaçados de extinção, sufocados pela poluição. Esta, em grande parte, é fruto da ganância. Os que se preocupam com o próximo, seguindo seus santos exemplos, estão também ameaçados de extinção. O que cresce velozmente, como erva daninha, é a tribo de seguidores de "São" Gerson, cuja doutrina manda tirar vantagem de tudo.

- Não importa. As dificuldades mundanas nunca me abateram. Cumprirei minha missão de agora com a mesma tenacidade que tive quando em vida.

- Deus o abençoe, meu santo. Ouçamos agora o Dr. Freud.

- Obrigado. Serei breve. Meu trabalho frutificou?

- Ah, Dr. Freud, como frutificou o seu trabalho. Eu sei que o senhor tinha as melhores intenções (daquelas que, infelizmente, acabam pavimentando o piso do Inferno), mas o resultado de seus estudos foi muito além do que o senhor poderia imaginar. O que de mais gostaram, foram as suas indagações sobre o sexo. Gostaram tanto, que agora não pensam em outra coisa. Nos filmes e nas novelas, por exemplo, o sexo impera absoluto. Só a violência lhe faz sombra. Mas já há quem esteja fazendo experiências no sentido de fundir as duas coisas. Esperam que seja muito lucrativa a desenfreada exploração da violência sexual, nas artes cênicas. A volúpia pelo sexo é tanta, que até aquele inocente ditado de antigamente - Cria fama e deita-te na cama - foi modificado. O que agora se diz (e se pratica) é: Deita-te na cama e cria fama.

- O senhor só falou nos filmes e nas novelas. Devo concluir, por isso, que o teatro ainda guarda a grandeza de sua origem grega?

- Nada disso, no teatro é mais ou menos a mesma coisa. A única diferença é que nele a infecção pornográfica se iniciou com os palavrões. Durante muitos anos as peças não continham palavrões. Os autores sabiam como expressar todos os sentimentos humanos, sem necessidade de recorrer à grosseria. Um dia, um autor mais afeito à boçalidade do que à educação, introduziu um palavrãozinho, pedido emprestado à literatura de cordel. Uma pitadinha só, de "pimenta", a título de "molho". Como a maioria não reclamou (até gostou!) a quantidade de palavrões foi aumentando aos poucos. Depois de algum tempo, as peças passaram a ter montes de palavrões, ditos a propósito de tudo ou sem propósito algum. E o público aplaudia cada vez mais. Hoje, já existem casos onde a peça praticamente desapareceu, ficaram só os palavrões. E cada vez há mais gente que aprecia o gênero...

- Ruim, ein! Como diria aquele filósofo-assaltante-de-trem, inglês, que se refugiou no Brasil e hoje é ali respeitada e festejada figura da sociedade local. (Todo ano, ele dá uma festa, com direito a bolinho de velas e tudo, para comemorar o aniversário daquele glorioso assalto que, nos trópicos, lhe deu fama e fortuna.)

Essa última observação foi feita por um espírito que não havia sido convidado (por ser morador do Inferno), mas conseguiu burlar a vigilância e "adentrar o gramado" (perdão, perdão, o recinto). Era o Espírito-de-Porco, iniciador de uma linhagem que produziu milhares de descendentes... Expulso da sala o penetra, o Arcanjo Gabriel prosseguiu com os esclarecimentos. Terminada a reunião, a equipe de notáveis foi enviada à Terra. A missão foi rotulada como "Operação Salvação da Humanidade".

Algum tempo depois, os viajantes retornaram e procuraram Gabriel para a apresentação do relatório.

- E então chegaram a uma conclusão? A humanidade ainda tem salvação?

- Certamente. As pessoas decentes e com sensibilidade ainda são muitas. Elas só não aparecem mais por causa do alarido dos cafajestes, que se multiplicam com uma velocidade espantosa. Mas isso tem remédio.

- E qual a solução que os senhores preconizam?

- Nós estudamos o problema em profundidade e verificamos que existem duas alternativas de solução, ambas com base na recomendação de um brasileiro...

- Um brasileiro?!

- Sim, isso mesmo, por incrível que possa parecer. O nome dele é Capistrano de Abreu. Foi um historiador que propôs a adoção de uma Constituição com apenas dois artigos:

"Artigo 1 ° - Todo brasileiro é obrigado a ter vergonha na cara.

Artigo 2° - Revogam-se as disposições em contrário."

A primeira de nossas alternativas consiste em estender o preceito a toda a humanidade e torná-lo impositivo. A nova lei seria como a da gravidade, ninguém, na Terra, poderia escapar dela.

- Essa solução não serve. Ela elimina o livre arbítrio e isso Deus não deseja fazer. Qual é a segunda alternativa?

- Ela consiste na conjugação das duas leis. Cada um continuaria livre para fazer o que lhe desse na veneta, mas se optasse por não ter vergonha na cara, perderia o direito de permanecer subordinado à Lei da Gravidade. Seria, em conseqüência, lançado ao espaço, para ir cultivar sua sem-vergonhice em outras plagas...

Arquivo do blog