Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Os usos do lulo-darwinismo



Editorial
O Estado de S. Paulo
13/12/2006

O mais bem-sucedido autodidata do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, decerto já terá ouvido falar no clássico ditado segundo o qual o jovem que não é de esquerda e o velho que continua a sê-lo ou são tolos ou desonestos. Claramente foi o que o inspirou na terça-feira a expor, com outras palavras, a teoria - de um oportunismo exuberante - que trata das transformações a que a servidão do tempo conduz as afinidades eletivas de cada qual, no plano ideológico. Diante dos convidados para a festa dos 30 anos da revista IstoÉ, o presidente se valeu do postulado darwinista da evolução das espécies - no caso, da espécie humana - a fim de sustentar, entre risos e aplausos do público, que "não tem outro jeito". Pela força do evolucionismo, assegurou Lula com a sua peculiar desenvoltura no manejo leve, livre e solto de conceitos que lhe foram apresentados ao longo dos seus 61 anos, na travessia da juventude para a velhice "quem é mais de direita vai ficando mais de esquerda, quem é mais de esquerda vai ficando social-democrata". Se essa é a cláusula pétrea dos nexos entre a biologia e a ideologia, não se poderia escapar da conclusão cruel de Lula: "Se você conhecer uma pessoa muito idosa esquerdista, é porque ela tem problemas; se você conhecer uma pessoa muito nova de direita, é porque também tem problemas." Seria curioso saber o que acham disso, numa ponta, o arquiteto comunista Oscar Niemeyer, 91 anos, e, na outra, o deputado pefelista ACM neto, 27.
Mas passemos. O que contam são duas coisas. Primeiro, o fato de que, com um golpe de ilusionismo verbal, Lula escamoteou uma verdade biográfica que já entrou para a história, como bem sabem todos quantos o conheceram quando ele se preparava para iniciar uma jornada sem paralelo, em fins dos anos 1970: ao modo do sertanejo de Euclides da Cunha, que era antes de tudo um forte, o sertanejo-metalúrgico-sindicalista sempre foi antes de tudo um pragmático. Tinha horror aos "barbudinhos da USP", mas sabia que precisava deles para construir o seu partido e a sua carreira, como precisava da Igreja, o que não lhe causava desconforto algum, e da companheirada sindical - estes sim os amigos do peito, hoje senhores de posições estratégicas no esquema petista de poder.
Por pragmatismo tratou de se assentar no fértil espaço praticamente baldio que a ditadura em retirada deixara na margem esquerda do País.
Duas eleições presidenciais perdidas fizeram-no ver, porém, que a maioria do eleitorado - os pobres que elegeram o caçador de marajás e o homem do real - era ainda mais pragmática. Se dependesse dele, a abertura à direita, com a coligação de 2002, teria vindo quatro anos antes. Mas o PT vetou. O que leva à segunda esperteza de sua fala aos abonados. Pois o lulo-darwinismo entrou em cena exclusivamente para justificar o que levou o "esquerdista" de antanho, que via no ministro Delfim Netto, o czar econômico da ditadura, um gênio do mal, a trocar hoje com ele amplexos fraternais e confidências freqüentes.
Situando-se no virtuoso centro político onde as pessoas sem problemas se instalariam aos 60 anos, Lula proclamou, confortável: "Eu agora sou amigo do Delfim Netto." De Delfim Netto e de tutti quanti (embora, evidentemente, a sua teoria evolucionista, aceitável no plano ideológico, não o seja no plano da ética). Jader Barbalho que o diga, Newtão Cardoso também. Para não falar nos outros espécimes do vasto zôo político, do PMDB para baixo - em número de cadeiras na Câmara bem entendido -, aos quais se aplica o dito de um velho coronel dos Matos Gerais, terra do escritor Pedro Nava: "Haveremos de resguardar a canalhice necessária para aderir em tempo oportuno." O problema é que com todo o pragmatismo usado para pavimentar a nova Ponte da Amizade, a impressão é de que ela tenderá a ligar o nada a coisa alguma e a se esburacar caso o engenheiro que a concebeu não descubra o que fazer com ela.
Se o destravamento da economia é a pedra de toque do segundo mandato e do propalado governo de coalizão, as coisas estão mal paradas. O presidente sabe o que quer: os já fetichizados 5% de crescimento, "sem inflação nem irresponsabilidade fiscal". Mas, não sabendo como chegar lá, rejeita um mapa depois do outro. Lula combate o estresse fazendo discursos. E o País, faz o quê?

Arquivo do blog