Com um fuzil apontado contra nós, o cinegrafista Jaime e eu entramos no Palácio Miraflores, no começo de 2003. Não bastante a minuciosa revista feita no portão principal, um soldado andou de costas apontando a arma contra nós em toda a travessia; do portão à entrada do prédio da sede do governo venezuelano. Excessivo o aparato, como tudo em Hugo Chávez. Lembrando-me daquele ambiente de ódio, do palácio cercado de arame farpado, na época da greve geral do começo de 2003, foi animador ver as imagens na televisão do povo venezuelano comemorando, no pátio do Miraflores, o comportamento da oposição reconhecendo a derrota e a legitimidade das eleições.
O voto é indispensável nas democracias, mas não é tudo. Sem o voto, não há democracia, mas ele sozinho não garante que um governo é democrata. Por isso, é preciso independência dos poderes, liberdade de imprensa, oposição atenta, funcionamento das instituições. Nesses quesitos todos, a Venezuela deixa a desejar.
Dos cinco diretores do Conselho Nacional Eleitoral, quatro são militantes do partido do governo. Integrantes da Sala Eleitoral do Tribunal Supremo da Justiça se declaram “vermelhos”.
O ministro da Energia, Rafael Ramírez, que é também presidente da PDVSA, disse que a estatal de petróleo, é “vermelha, vermelhinha”, e avisou aos trabalhadores, numa declaração registrada em vídeo, que eles não teriam lugar na empresa se não apoiassem Hugo Chávez.
Eles sabem que é verdade.
Na greve de 2003, Chávez demitiu 18 mil funcionários por participarem do movimento. A empresa perdeu quase todo o centro de pesquisa. Até hoje, ela não voltou aos níveis de produção anteriores à greve.
Quem já viveu sob a ditadura, numa experiência recente como a do Brasil, não pode ser ingênuo. O governo Lula finge que não vê, mas são visíveis as grosserias institucionais feitas por Chávez, como aquela inauguração da ponte, da qual Lula fez parte, em que a máquina pública foi usada de forma escancarada pelo então candidato-pres i d e n t e .
Há boas e más notícias sobre a Venezuela. A boa é o forte comparecimento às urnas, diferentemente do que se imaginava, que manteve crescente a participação eleitoral no país. A abstenção foi de 36,5% em 1998 quando Chávez foi eleito na primeira vez; aumentou para 43,69% em 2000, quando ele foi reeleito; caiu para 30% no referendo que tentou tirá-lo do poder em 2004 e agora voltou a cair para 24,7%. É a segunda menor abstenção. A primeira foi na eleição de Carlos Andrés Perez, que, a propósito, não terminou o mandato e foi condenado à prisão domiciliar por corrupção.
A pequena abstenção, num país onde o voto não é obrigatório, mostra a volta do interesse pela política tanto dos partidários do presidente quanto dos opositores. As más notícias são os modos e as intenções de Chávez.
Na Venezuela, falta tudo.
Mesmo assim, ele usa os recursos públicos para sua demagogia diplomática. À Argentina, o presidente venezuelano ofereceu, esta semana, US$ 80 milhões para salvar a cooperativa de leite SantaCor, que reúne 1.600 produtores, de suas dificuldades financeiras. O problema é que o contribuinte venezuelano é que paga por isso; e pelo subsídio a Cuba; pelas compras de títulos argentinos, paraguaios, bolivianos; pelos subsídios aos pobres dos Estados Unidos, além de outras estripulias. Chávez disse que está criando o eixo Caracas-BrasíliaBuenos Aires-Montevidéu.
Ficamos sendo, assim, uma escala do eixo. Ao Brasil, ele propõe uma sandice, o Gasoduto do Sul, que o Brasil leva a sério: um gasoduto de oito mil quilômetros que atravessa a Floresta Amazônica, provocando danos ambientais incalculáveis e com custos fiscais imprevisíveis; tudo para que a Venezuela possa ter mercado para o seu gás no Brasil e na Argentina.
Qualquer alternativa é mais barata que essa.
Hugo Chávez parece o que não é. Parece de esquerda, e é apenas um político que está a bordo de um projeto personalista que foi moda na América Latina nos anos 50; parece democrata por ter se submetido a várias eleições, mas usa as instituições democráticas para um projeto autoritário; parece um bom governante, já que foi reeleito, mas é fruto de uma poderosa máquina de propaganda, de seu inegável talento de marketing; parece estar se consolidando como líder da América do Sul, mas é apenas mais espalhafatoso.
Alguém consegue imaginar o Brasil sendo liderado por um projeto autodenominado bolivariano? Pelo tamanho, pela força econômica, pelo peso internacional, o único capaz de liderar a América do Sul é o próprio Brasil, que nunca gostou de se proclamar líder.
As relações entre Brasil e Venezuela na área comercial vão continuar crescendo, e não apenas o rentável contrabando de gasolina na fronteira. Pelo relato do correspondente Larry Rohter, do “New York Times”, o mercado ilegal floresce porque o incentivo é grande: no Brasil, um galão de gasolina (3,7 litros) custa US$ 5; na Venezuela, US$ 0,17.
Não apenas a gasolina tem preço artificial lá. Há controle de preços e câmbio e, mesmo assim, a inflação bateu em 15% no ano. Apesar disso, o riscoVenezuela caiu — é só um pouquinho maior que o do Brasil — e os bancos internacionais avaliam como boas as perspectivas da economia venezuelana. O verdadeiro risco que a Venezuela corre não é visível.
É o de perder a chance, como já perdeu nos anos 70, de usar o boom do petróleo para realmente mudar o país.
Entrevista:O Estado inteligente
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