Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Macaqueando: em torno das imitações (Final)


Artigo - Roberto DaMatta
O Globo
13/12/2006

Não há sociedade que não tenha macaqueado algo de alguma outra. Tirando o seu óbvio lado preconceituoso e racista, esse macaquear equivale a roubar esperta e malandramente algo valioso, como fez Prometeu roubando o fogo dos deuses. E - agora falando "sério" - realizaram os ingleses, levando as sementes da seringueira amazônica para a Malásia; os paradoxalmente inimitáveis japoneses, arremedando, com refinamento, a tecnologia de um ocidente que se pensava superior, imbatível e inatingível - justamente porque se achava inimitável. Ou nós, brasileiros, arrebatando o football dos ingleses supostamente superiores e originais, quando transformamos o jogo duro e seco do "pé na bola" na arte malandra e cheia de graça e jogo de cintura da "bola no pé".

O problema não é imitar, mas honrar a imitação, levando-a a sério. O que não deve acontecer é a importação do valor ou da instituição, digamos, da democracia e da igualdade, como um mero artefato capaz de satisfazer suas elites e, com isso, racionalizar um processo de mudança a ser adiado ou hipocritamente adotado para "inglês ver", como tem ocorrido neste país.

Tudo na vida social tem conseqüências. As imitações, como os amores, os filhos, as profissões, o que se diz e escreve, as religiões e os credos, tem implicações. São as famosas "práticas" ou a tal "práxis", que os marxistas pronunciam como o outro lado da teoria, despertando em nós, ignorantes do stalinismo, do maoismo e do fidelismo, aquele enlevo mágico por uma doutrina que iria transformar definitivamente o mundo.

Hoje, parece que vivemos o fim de uma longa e preciosa era de imitações. A globalização, desidealizando tudo, não deixa pedra sobre pedra. Sabemos demais e não temos o que imitar, exceto honrar aquela dimensão paradoxal das cópias, que é fazer com que a coisa ou a instituição imitada funcione.

O discurso do passado tinha muito a ver com as famosas ausências que marcavam o nosso desenvolvimento (por isso mesmo chamado de "subdesenvolvimento"). Como suprimir o "sub"? Fácil, diziam os entendidos: imitando o que faziam os ingleses, os alemães, os americanos e, é claro, os planos qüinqüenais soviéticos.

E assim temos feito. Macaqueamos o parlamentarismo inglês no Império e o liberalismo americano na República. Só que, na cópia, há o borrão, o lápis sem ponta e a mão às vezes tosca do copiador que vê o que imita inevitavelmente a seu modo. Daí o "poder moderador", o "coronelismo" e o messianismo semifascista como parte das nossas modernizações políticas. Ademais, o problema de todo macaquear é saber até onde e quando se deve levar a cópia. Pois a facilidade da adoção superficial e para "inglês ver" da coisa feita permite supor que o problema foi resolvido pelo fato de que sua solução foi copiada e está impressa em forma da lei. Outro problema é saber até onde vamos continuar imitando, porque, num mundo menor, sabemos mais do que no passado e, com isso, perdemos nossa ingênua capacidade de repetir que os franceses são civilizados, os ingleses fleumáticos, os americanos justos; e que o regime soviético foi uma experiência maravilhosa. As viagens tiraram/liquidaram nossa capacidade de idealizar o outro e, pela velha dialética dos elos entre teoria e prática, de demonizar o que é nosso.

Hoje, resta a sensação um tanto deprimente que cumprimos com honra o ciclo das imitações. A tarefa que nos aflige e exaspera é fazer com que as imitações adotadas funcionem. Há uma desconfiança terrível no ar: a de que podemos fazer com que o Brasil seja eficiente e funcione de verdade. Basta fazer com que nossas imitações façam aqui o que fazem lá fora. Isso vale para a política, com seus parlamentos corruptos e urnas eletrônicas à prova de mensalão; para as cortes supremas, com suas becas, seu linguajar secreto, sua busca de fidalguia e seus invejáveis, ultramodernos e democráticos computadores; para os órgãos de segurança, com sua proverbial ineficiência e seu tradicional banditismo, tocados a carros modernos e sistema de comunicação informatizado; e, finalmente, para as administrações absolutamente paralisadas diante de seu gigantesco aparato imitativo. Em vez de pensar o Estado somente como um instrumento destinado a redimir o mundo, devemos pensá-lo também como um conjunto de redes gerenciais que devem ao povo um mínimo de eficiência e de respeito pelos impostos que pagam. Copiamos as instituições, mas esquecemos de imitar a sua eficiência. Essa é a maior questão da modernidade nacional.

Imitamos tanto a tal "América" que, hoje, não há mais ninguém que ainda pense que o povo não tem o direito de ter "satisfação garantida ou o seu dinheiro de volta". Um slogan de uma pioneira loja de departamento, presente nas mentes e corações de todo o brasileiro que quer, senão o dinheiro (sempre roubado), pelo menos o voto de volta. E olha que mal acabamos de comemorar, como lembra um paralisado e devidamente apagado presidente Lula, as eleições!


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