...são, na verdade, os primeiros sinais
da luta do partido para sobreviver depois
de 2010, quando Lula deixará o governo
Diego Escosteguy
Desde que o presidente Lula foi eleito para um segundo mandato, o PT começou a arregaçar as mangas. Tem esperneado para entregar uma parte dos cargos que ocupa no governo federal. Em reunião de sua cúpula nacional, chancelou a coalizão com o PMDB, mas não escondeu a cara feia. "Nós aprovamos a coalizão, mas eu tenho minhas opiniões", diz Raul Pont, secretário-geral do partido, ressaltando seu desconforto. Na semana passada, no lance mais evidente de que o partido tem seguido um rumo que não é do agrado do presidente Lula, a bancada petista na Câmara resolveu lançar um candidato ao comando da casa: o deputado Arlindo Chinaglia. "Estamos abertos a outras alternativas, mas o nome de Chinaglia não é para cumprimentar a platéia. É para valer", define Marco Aurélio Garcia, presidente do PT. A candidatura contraria o desejo de Lula, que preferia ver o deputado Aldo Rebelo, do PCdoB de São Paulo, reconduzido a um segundo mandato, e reaviva os temores da reedição do fiasco do ano passado, quando o PT lançou dois petistas à presidência da Câmara – e o vitorioso acabou sendo o inesquecível Severino Cavalcanti.
Dida Sampaio/AE |
Chinaglia, o candidato do PT: reeditando o fiasco Severino? |
Como contrariam as intenções de Lula, as marolas do PT podem dar a impressão de que o presidente e seu partido estão em rota de colisão. Na verdade, o cenário esconde um movimento subterrâneo, de placas tectônicas: o PT está, desde já, arrumando o caminho para tentar sobreviver a 2010, quando Lula deixará o Palácio do Planalto e não poderá mais ser o candidato preferencial do petismo – como tem sido desde que o partido foi fundado. "O PT já percebeu que fatalmente vai perder muito espaço no governo e começou a reagir a isso", analisa o cientista político David Fleischer, da Universidade de Brasília. Pode parecer uma crise aguda de fisiologismo, mas é compreensível que, na luta para sobreviver, o PT mire em cargos no governo ou no comando da Câmara. Afinal, são alvos compatíveis com a transformação sofrida pela legenda, cujo projeto inicial era construir um partido de massas à esquerda e, com o tempo, perdeu nitidez ideológica e converteu-se numa máquina eleitoral.
Em 2010, quando Lula encerrará o segundo mandato, o PT vai começar a viver um momento inédito em sua história. Será a primeira vez, em trinta anos, que o partido não terá Lula para ser sua principal estrela eleitoral (veja quadro). Se tomar um caminho semelhante ao do seu antecessor, Lula poderá manter-se como estrela política, assumindo um papel de guia do seu partido, como tem feito Fernando Henrique Cardoso no PSDB. Mas seu papel como protagonista eleitoral estará esvaziado – pelo menos, por ora. Como terá apenas 65 anos quando deixar o governo, Lula, teoricamente, pode voltar a candidatar-se na eleição de 2014, quando terá 69. A especulação, naturalmente, ocorre dentro do cenário da normalidade democrática – e não, digamos, do exotismo venezuelano, em que Hugo Chávez vem se perpetuando no poder (veja reportagem). Na quarta-feira passada, Chávez desembarcou em Brasília para uma visita de dois dias depois de conquistar seu terceiro mandato. Se nenhum imprevisto acontecer, e nenhuma outra mudança constitucional for feita, Chávez governará seu país até 2012, quando completará catorze anos consecutivos no poder. Na América Latina, só perde para Fidel Castro, soberano em Cuba há quase cinco décadas.
Sebastião Moreira/AE |
Raul Pont: ele tem as suas opiniões |
A dependência do PT em relação a Lula não é um dado comum nas democracias mais consolidadas e, mesmo na América Latina, cuja tradição do caudilhismo produziu clássicos desse fenômeno, como na Argentina de Perón ou no Peru de Haya de la Torre, já não se assiste a situações semelhantes. "É raro porque, em qualquer democracia avançada, há alternância de poder e os partidos se diferenciam pelos programas que os orientam", diz o cientista político Octaciano Nogueira, da Universidade de Brasília. A situação atual no Brasil deve-se, em grande parte, ao comportamento do próprio Lula, que sempre foi altamente cioso de sua autoridade partidária e nunca permitiu que, à sua volta, florescessem líderes competitivos. Encaixa-se, assim, na definição do "poderoso como sobrevivente", criada pelo ensaísta búlgaro Elias Canetti, autor do clássico Massa e Poder.
"O poderoso como sobrevivente de Canetti é aquele que cria um vazio ao seu redor com o objetivo de evitar a possibilidade de perder poder", comenta o filósofo Roberto Romano, da Universidade Estadual de Campinas. "Lula nunca deixou espaço para que surgissem outras lideranças no partido. O PT sempre esteve a serviço de Lula, e não o contrário", completa Romano. Exatamente porque nunca criou uma liderança à altura de Lula, o PT enfrentará um desafio enorme para manter-se em pé e competitivo depois de 2010. O desafio poderá pautar a relação entre o partido e o presidente no segundo mandato, como já se viu na semana passada com a candidatura de Arlindo Chinaglia. "Mas ainda é cedo para dizer se essa situação de tensão entre Lula e o PT vai resultar num divórcio", diz David Fleischer, da Universidade de Brasília. "Não se pode esquecer que, dependendo das circunstâncias, Lula poderá ser um excelente cabo eleitoral."Fotos Evaristo Sá/AFP, Arquivo /AE, Folha Imagem, Joedson Alves/AE