Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 09, 2006

Hugo Chávez nos passos de Fidel Castro

Um Fidel com petróleo

Fidel está à morte. Com ele será enterrada a ruinosa experiência do socialismo caribenho. Com petrodólares
e planos de expandir sua revolução, Hugo Chávez já se
apresenta como novo líder da esquerda latino-americana. Fidel teve a história ao lado dele e muito carisma.
Fracassou. Chávez tem petróleo e nenhuma autocensura.
Vai fracassar também. Mas a que preço?

O FILHOTE DO DITADOR

O presidente venezuelano está seguindo
os passos do cubano moribundo

Juan Barreto/AFP
O presidente Chávez: ele quer se reeleger indefinidamente, criar partido único e pôr sua ideologia no currículo escolar


CHÁVEZ

META DE SE PERPETUAR NO PODER
No poder há oito anos e reeleito para mais seis, Chávez anunciou a intenção de criar a reeleição contínua, sem limite

DESEJO DE EXPORTAR A REVOLUÇÃO
Usa o dinheiro da venda de petróleo para bancar aventureiros esquerdistas em outros países

NARCISISTA E PROLIXO
Tem um programa dominical na televisão em que canta, discursa durante horas e faz palhaçadas

INVENÇÃO DE UM INIMIGO EXTERNO
Escolheu os Estados Unidos como desafeto, apesar de o país ser o principal parceiro comercial da Venezuela

AFP
Nesta foto publicada em setembro no jornal oficial Granma, Fidel aparece no quarto do hospital: Cuba já prepara seu funeral

FIDEL

META DE SE PERPETUAR NO PODER
Está no poder desde 1959

DESEJO DE EXPORTAR A REVOLUÇÃO
Tentou exportar a Revolução Cubana para outros países da América Latina e a África

NARCISISTA E PROLIXO
Dono de retórica magnética, usou a TV e o rádio para intermináveis discursos

INVENÇÃO DE UM INIMIGO EXTERNO
Pôs no embargo americano a culpa pela pobreza de Cuba


Diogo Schelp e Denise Dweck


Com o cubano Fidel Castro no leito de morte, o coronel Hugo Chávez, ditador eleito da Venezuela, está se apresentando como o novo farol da esquerda revolucionária na América Latina. "Ninguém vai me impedir agora de construir o socialismo", disse Chávez, na semana passada, depois de reeleito para mais seis anos no poder. Ninguém impediu Fidel. Deu no que deu. Cuba tornou-se hoje uma nação pária no mundo, com uma população faminta, despreparada para os rigores da economia globalizada e, mesmo que alfabetizada no jargão marxista, iletrada nas questões que determinam a riqueza das nações. Aparentemente, ninguém vai impedir Chávez de continuar sua tarefa de construção do socialismo na Venezuela. Tanto em Cuba quanto na Venezuela – e de resto em todos os outros lugares onde a experiência foi testada – a construção do socialismo coincide sempre com a destruição dos países nos quais o sistema é implantado. Cubanos e venezuelanos são hoje povos com horizonte menor do que tinham antes de ser submetidos a ditaduras socialistas.

Com o respaldo das urnas, o presidente da Venezuela viu-se à vontade para anunciar a intenção de torcer mais uma vez a Constituição, escrita por ele próprio, de forma a se manter no poder por quanto tempo quiser. No mesmo fim de semana, as circunstâncias anunciaram-lhe outra oportunidade – a de ocupar o papel que há décadas é de Fidel. Diplomatas sediados em Cuba dão como certo que o ditador está morrendo de câncer intestinal. Aos 80 anos, afastado do poder desde agosto, ele faltou até às comemorações públicas do próprio aniversário, no sábado 2. Faltam ao coronel venezuelano a respeitabilidade e as circunstâncias históricas que deram transcendência a Fidel Castro – mas sobra-lhe dinheiro. "Em termos de idéias, de capacidade para elaborar um conceito ideológico, Chávez não conseguiria suceder a Fidel", disse a VEJA o historiador venezuelano Elias Piño, da Universidade Andrés Bello, em Caracas. "No entanto, Chávez tem o que Fidel nunca teve: o dinheiro farto do petróleo, com o qual está se tornando o banqueiro continental da revolução bolivariana", diz Piño.


Celso Junior/AE
Dario Lopez/AP
Chávez visita Lula, na semana passada, à esquerda, e Kirchner comemora sua eleição em 2003: nem todas as esquerdas são iguais

Fidel tentou exportar sua revolução, mas carecia dos recursos para impô-la a povos que, como os bolivianos de então, rejeitavam as ditaduras comunistas. Cuba dependia da mesada soviética e passou fome depois que a União Soviética virou fumaça. Aliás, sua sobrevivência se deve, hoje, à ajuda enviada por Chávez. Estima-se que o coronel venezuelano já tenha torrado 25 bilhões de dólares na tentativa de aumentar sua influência no exterior. Jorge Castañeda, ex-ministro de Relações Exteriores do México e estudioso da esquerda latino-americana, prefere colocar as analogias em outro patamar. Para ele, Chávez é um Domingos Perón com petróleo. Da mesma forma, seu mais notório pupilo, o boliviano Evo Morales, não deve ser visto como um Che Guevara indígena. Ele é apenas um populista habilidoso e totalmente irresponsável.

O argentino Perón é o protótipo do caudilho populista, na tradição latino-americana, que acaba por conquistar a lealdade da esquerda. Para esse tipo de governante, o desempenho econômico, os valores democráticos, os objetivos programáticos e as boas relações com os Estados Unidos são apenas aborrecimentos. Só interessa manter a popularidade a qualquer custo. Há dois recursos básicos no arsenal populista: o nacionalismo desavergonhado (que é alimentado pela entrada em quantas brigas for possível com Washington) e a distribuição assistencialista. Para manterem o poder e obterem dinheiro para sustentar o clientelismo, os caudilhos populistas precisam assumir o controle das fontes de receita disponíveis – no caso da Venezuela, o petróleo; no da Bolívia, o gás natural. Em geral, dão à usurpação das riquezas nacionais o nome de "construção do socialismo". Na semana passada, Chávez anunciou sua intenção de construir o "socialismo do século XXI". Pelo que adiantou até agora, significa, para começar, limitar a propriedade privada e a liberdade de imprensa.


Juan Mabromata/AFP
Acima, partidários de Chávez comemoram a reeleição. O presidente criou 1 milhão de empregos públicos e distribui dinheiro entre aqueles que freqüentam os centros bolivarianos, sua base de poder na periferia. Abaixo, Mercal de Caracas, supermercado que vende alimentos a preços subsidiados: a pressão inflacionária e o controle de preços esvaziaram as prateleiras e aumentaram as filas
Paulo Vitale

A experiência cubana, e agora a venezuelana, comprova que a "construção do socialismo" é o caminho mais curto para a destruição de um país. Quando Fidel tomou o poder, Cuba exibia índices socioeconômicos invejáveis. Sua renda per capita era a quarta maior da América Latina e o país exportava em dólares o mesmo que o México, país cinco vezes mais populoso. A ilha era o terceiro em uma lista de onze países latino-americanos com o maior consumo de alimentos por habitante, com média diária de 2.730 calorias. O socialismo foi estabelecido formalmente em abril de 1961. A economia planificada mostrou-se um desastre imediato. O racionamento de alimentos foi estabelecido antes do fim do ano. Hoje, a renda per capita cubana é a 29ª da América Latina. A queda no consumo diário de alimentos, hoje em 2 417 calorias, jogou Cuba para o último lugar na lista de onze países. Os cubanos sabem ler e escrever, mas são praticamente analfabetos digitais. Apenas 2% da população tem acesso (censurado) à internet, contra 25% na Costa Rica.

"Os governos socialistas queriam atingir o mesmo desenvolvimento de uma economia de mercado por meio de um planejamento centralizado nas mãos do governo. Isso é impossível porque o Estado não é um bom piloto do motor que produz a riqueza de uma nação. A iniciativa privada desempenha melhor esse papel", disse a VEJA Vladimir Kontorovich, economista ucraniano estudioso dos sistemas socialistas do Haverford College, na Pensilvânia, Estados Unidos. "Por isso, a economia controlada pelo governo é inimiga do bem-estar da população." A construção do socialismo à moda chavista está levando a Venezuela ao mesmo destino de Cuba. O modelo adotado por Chávez não tem por base um programa sistemático ou organizado. Trata-se de uma mistura de clichês socialistas e da repetição de erros já cometidos por governos venezuelanos do passado. "Em matéria econômica, não há grande diferença entre Chávez e seus antecessores: todos, basicamente, sustentaram o crescimento da economia no aumento dos gastos públicos, desperdiçando a receita do petróleo", declarou a VEJA o economista venezuelano Hugo Faría, do Instituto de Estudos Superiores de Administração, de Caracas.

No caso de Chávez, o dinheiro da venda do petróleo – a Venezuela tem a sétima maior reserva mundial do produto fóssil – é direcionado para projetos assistencialistas. Conhecidos como misiones, esses programas estabelecem uma dependência direta entre a população mais pobre e a Presidência da República. Há misiones de alfabetização de adultos, de cooperativas agrícolas, de atendimento médico e de venda de alimentos subsidiados, entre outras. Mas não criam empregos ou condições para que os pobres saiam definitivamente da miséria. "Ao governo interessa que haja muitos pobres, porque são eles que lhe garantem o triunfo eleitoral", diz Faría. Em outra frente, Chávez hostiliza a propriedade privada e cria uma sensação de insegurança jurídica que desestimula os empresários a investir em seus negócios – a forma mais segura para gerar empregos e um crescimento sustentado.

Eis um balanço parcial da destruição causada por Chávez:

Apesar do aumento nos gastos estatais com saúde, a mortalidade infantil elevou-se 9% nos cinco primeiros anos do governo Chávez. Isso ocorre porque o governo gasta mal o dinheiro.

A classe média encolheu 30% desde 1998.

A insegurança jurídica e a desapropriação de empresas fizeram com que o investimento direto externo caísse 86% no primeiro trimestre deste ano, comparado com o mesmo período do ano passado. O número de empresas caiu de 17.000 para 8.000 nos oito anos de governo bolivariano.

A inflação está em elevação e deve fechar o ano em 17%. Só não foi maior porque o governo mantém um rígido controle de preços e de câmbio. A razão para a pressão inflacionária é que há dinheiro demais circulando na Venezuela. Chávez é perdulário com a receita do petróleo: os gastos públicos em 2006 cresceram 124% em relação a 2005 e devem aumentar mais 32% no ano que vem. O excesso de bolívares alimentou o consumo e fez crescer os depósitos bancários em 84%, só neste ano. Como ninguém tem coragem de tomar empréstimos para projetos de longo prazo, todo o poder de compra é despejado no consumo. Resultado: inflação de demanda. Já estão faltando nas prateleiras venezuelanas alimentos básicos como leite e carne.

A produtividade dos trabalhadores venezuelanos caiu 36% entre 1978 e 2004. No Chile, esse índice melhorou 98%.

Ao concentrar os gastos públicos nos programas assistencialistas, Chávez descuidou da infra-estrutura do país, que está desmoronando. Literalmente. No início do ano, a ponte que levava ao aeroporto de Caracas foi abaixo por falta de manutenção. Nem a maior fonte de renda do governo chavista escapa do descaso: entre 1998 e hoje, a produção de barris de petróleo caiu 30% na Venezuela, por falta de investimentos na manutenção dos equipamentos.

De acordo com a ONU, a Venezuela passou o Brasil no índice de violência com arma de fogo. Em Caracas, o crime incontrolado reflete a anarquia e a falta de infra-estrutura da cidade.

Dado Galdieri/AP
Evo Morales: estatização da economia


Boa parte desses problemas se deve ao caos da administração pública bolivariana, provocado pela centralização do poder em Chávez. Entre outras medidas, ele subordinou as misiones diretamente ao seu gabinete, fazendo dos ministérios meros coadjuvantes. Isso torna a tarefa de controlar os gastos muito mais complicada. Conta-se que na mesa do presidente há pilhas de contratos de fornecedores do governo esperando sua assinatura. "Até o direito de comprar divisas para fazer importação depende da aprovação do governo, e Chávez usa esse controle como forma de pressão política", disse a VEJA o economista venezuelano Ricardo Hausmann, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Chávez aprendeu com Fidel Castro a não confiar em ninguém, a não ser em si mesmo. Isso explica por que são cubanos que fazem a segurança do presidente venezuelano e por que ele criou uma milícia civil que responde diretamente a ele – e não ao comando das Forças Armadas. "Desde o princípio, Fidel sempre foi muito narcisista e não queria que nenhuma outra pessoa ofuscasse sua liderança", disse a VEJA o americano Brian Latell, autor do livro After Fidel (Depois de Fidel). A descrição casa perfeitamente com a personalidade de Chávez e está de acordo com o caudilhismo latino-americano.

Para ser estável, o poder nos Estados autoritários deve se concentrar nas mãos de um indivíduo ou de um pequeno grupo dirigente. São as personalidades – não as instituições – que importam em tais países. Como Cuba, a Venezuela tem um presidente, mas não uma Presidência. Chávez, como Fidel, é a revolução. Em ambos os casos, a lealdade ao Estado é a lealdade ao líder. Não há na Venezuela vestígio da independência dos poderes, a pedra fundamental da democracia moderna. Além do Executivo, Chávez controla 100% do Legislativo, o Judiciário, o comitê eleitoral e a PDVSA, a estatal do petróleo. Seu plano agora é reunir todos os grupos da base aliada em um único partido. "Líder único, partido único e ideologia única – só falta instituir uma imprensa única para vivermos sob o regime cubano", disse a VEJA o analista político venezuelano Alberto Garrido, de Caracas. Ele acredita que o único freio a impedir a censura à imprensa e a abolição da propriedade privada é o desejo de Chávez de manter as aparências diante da comunidade internacional.

Nos últimos doze meses, Chávez aproveitou a onda de eleições presidenciais na América Latina para ajudar candidatos amigos. A ofensiva vai bem. Venceu na Nicarágua e no Equador. Perdeu no Peru e no México, é verdade, mas o triunfo na Bolívia compensa qualquer revés. Fiel ao receituário chavista, o presidente Evo Morales está reescrevendo a Constituição para ampliar o próprio poder, expropriou os recursos minerais (tungando a Petrobras) e anunciou o direito de revogar a seu bel-prazer o direito de propriedade. Os efeitos nefastos já são visíveis: no primeiro semestre deste ano, os investimentos no setor de petróleo e gás da Bolívia caíram 40% em relação ao mesmo período do ano passado.

O tributo que a esquerda latino-americana rende a Fidel Castro é difícil de ser transferido. Chávez tem dinheiro para comprar muita gente e, com seu antiamericanismo, atrai outros tantos. Mas está longe de liderar uma guinada à esquerda no continente. Há, melhor dizer, dois tipos de governos esquerdistas, que não devem ser confundidos. Um deles é de corte moderno, mantém a mente aberta, respeita a democracia e a realidade econômica. Essa centro-esquerda, que inclui o Brasil, o Chile, o Uruguai, é a maioria. Seus presidentes podem subir no mesmo palanque, mas não se deixam influenciar pelo histriônico coronel de Caracas. Néstor Kirchner, da Argentina, é um digno herdeiro de Perón – mas seu esquerdismo é mais idiossincrático do que radical. Chávez lidera um número reduzido de governos de mente fechada, reconhecíveis pelos arroubos nacionalistas e populistas. Com a morte de Fidel, o poder passa às mãos de figuras cinzentas, ao estilo de um politburo soviético, e a ilha deixa de ter relevância ou influência geopolítica. Se o que acontecerá em Cuba daqui em diante interessa, basicamente, apenas aos cubanos, os rumos políticos da Venezuela trazem risco para toda a região. A partir desse momento, a esquerda revolucionária, órfã de pai e mãe, só pode se voltar para Chávez. Diz o americano William Ratliff, do Instituto Hoover, nos Estados Unidos: "O pior é que a revolução de Chávez é ainda mais irreal que a cubana: ele passa o tempo todo misturando Simon Bolívar com Mao Tsé-tung". Os venezuelanos já perderam a guerra contra Chávez. Ele precisa agora ser contido antes que consiga "construir o socialismo" e destruir mais países na América Latina.

Com reportagem de Thomaz Favaro





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