Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Encontro do veludo com o cetim



Artigo - Gaudêncio Torquato
O Estado de S. Paulo
17/12/2006

A observação de Lula de que esquerdistas acima de 60 anos e direitistas muito novos têm problemas ganha o concurso do “riso a bandeiras despregadas”. Nem mesmo o mal-estar que a boutade presidencial causou a setores da intelligentsia e a petistas consegue atenuar o riso. Quem considera Luiz Inácio esquerdista não entende de esquerda ou desconhece o personagem. Um pequeno esforço de memória dá para pinçar seu pensamento.

“O senhor é comunista?”

“Não, sou torneiro mecânico.” Assim respondeu quando o interrogaram nos tempos da ditadura. Resposta recorrente e que teve lances como este: “Não sou um cara muito chegado às definições ideológicas. Não quero saber o que Marx fez, o que Lenin fez, o que Engels fez.” Luiz Inácio foi um adversário histórico do Partido Comunista Brasileiro, fato freqüentemente lembrado pelo deputado Roberto Freire, presidente do PPS, partido que nasceu no leito do velho PCB.

O torpedo, mesmo ganhando contrariedade e risadas, por querer internar no sanatório esquerdistas da terceira idade, alguns deles com lugar garantido no altar da Pátria, como o arquiteto Oscar Niemeyer, tem o mérito de resgatar a verdade profunda da alma, um sentimento que o homem não manifesta enquanto é prisioneiro do passado, devedor de compromissos e refém de ambições. Neste segundo mandato, Luiz Inácio parece sentir-se liberto de pessoas que teimam em enquadrá-lo na esquerda, na crença de que as votações arrebatadoras que recebeu, ao longo de sua história, mais se devem ao simbolismo do perfil - um nordestino que chegou à cidade grande num caminhão pau-de-arara e ascendeu ao cargo mais importante do País - do que ao posicionamento ideológico. Alguns intelectuais se consideram tutores do ex-metalúrgico, fazendo vista grossa a eventuais gols contra, essas pequenas extravagâncias que Lula jamais abandona, principalmente diante de platéias que já entram nos eventos com palmas prontas. Para os movimentos sociais, o fato de o presidente renegar a esquerda não causa constrangimento, contanto que lhes sejam concedidas condições para seguir entoando o canto revolucionário.

É evidente que Lula, com a polêmica declaração, quis justificar a aproximação com o “direitista” Delfim Netto, que não se reelegeu deputado e de quem se considera amigo, eles que foram adversários nos tempos de chumbo. Deixando o plano de explicação para a análise do escopo da fala, não há como deixar de reconhecer que o presidente tem certa razão ao dizer que pedaços das margens correm para o centro, uma tendência internacional. O homem é ele e suas circunstâncias e só os imbecis não mudam, como ensina Ortega y Gasset. Mesmo que Lula fosse empedernido radical, não poderia deixar de acompanhar os movimentos da geopolítica internacional, como o arrefecimento das correntes de esquerda e direita, o enfraquecimento dos Parlamentos e das oposições, o desânimo das bases eleitorais e o estiolamento das siglas, com a fluidez dos partidos de massas e a expansão dos catch-all parties (partidos que agarram tudo). Emerge, em conseqüência, um ponto de chegada dentro de uma democracia costurada com os fios do liberalismo econômico, fortes redes de proteção social e amplas teias burocráticas governamentais. Vivemos o ciclo das modernas tecnodemocracias, na expressão de Maurice Duverger. Querendo fazer humor com a rigidez de certos “esquerdistas e direitistas”, Lula que, segundo se sabe, tem a capacidade da esponja (absorve tudo o que ouve), acerta em cheio quando identifica o equilíbrio pontuado pelas social-democracias ocidentais. E é isso que os herdeiros e cultores da “revolução do proletariado” não aceitam.

Se a esquerda defende luta por mudanças e justiça social, pode-se aduzir que há poucos direitistas no Brasil. O assessor presidencial André Singer, que escreveu um livro sobre esquerda e direita no eleitorado, calcula que os esquerdistas cheguem a 15% dos eleitores, enquanto os direitistas somam uns 30%, ficando o restante nos espaços mais centrais de um lado e de outro. O que não está claro é o significado de esquerda e direita, principalmente por ser precária a definição, como Singer adota, de uma relação entre posicionamento à esquerda e escolaridade média mais elevada, identificação com a justiça social e transformação do País por meio da organização de grupos sociais, de baixo para cima. Ora, um fenômeno de alta significação no Brasil, nos últimos tempos, é a organicidade social. O poder que nasce e se desenvolve nos núcleos sociais, empurra o poder central (esferas públicas) e exige mudanças. Sob essa hipótese, o País vivencia o auge de uma identidade esquerdista. Nada mais falso. Lula não está “gagá”, como o definiram alguns de seus eleitores. Se disse um disparate ou entrou na andropausa, como outros afirmaram, não seria pelo fato de defender o caminho do meio, e sim pelo uso de um “lulômetro” que usa o fator idade para medir ideologia. Seria risível imaginar figuras exponenciais da intelectualidade pedindo conselhos a Freud, o pai da psicanálise, ou andando como dândis nos sanatórios por conta de aflições ideológicas.

Na região de Bordeaux, na França, direita e esquerda são referências para cultivo de uvas. Na margem direita, planta-se a uva Merlot, conhecida pela flexibilidade; e na esquerda, a uva Cabernet Sauvignon, conhecida pelo extremo conservadorismo. Essa classificação tem mais utilidade que o uso das duas margens para caricaturar a sociedade brasileira. Aliás, um dos mais caros vinhos do mundo provém de uma região central da França. Trata-se da Borgonha, no centro-leste, onde se cultiva a complexa e delicada uva Pinot Noir, que produz o vinho tinto mais famoso da região, não por acaso o preferido da era Lula. Esse vinho, néctar dos deuses para uns, é mais conhecido pelos sessentões (caiu a ficha) como “o encontro do cetim com o veludo”. Charada decifrada: o centro é mais espaçoso que as margens. Porque é o lugar onde a experiência acolhe a satisfação. Lula tem razão.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da
USP e consultor político. E-mail:
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