Entrevista:O Estado inteligente

domingo, dezembro 17, 2006

ELIANE CANTANHÊDE Mais uma peça no quebra-cabeça

NOVA YORK - Quando cheguei para a entrevista dos pilotos do Legacy, Joe Lepore e Jan Paladino, 77 dias depois da tragédia de 29 de setembro, estava nervosa. Um tema doloroso, cheio de termos técnicos, em outra língua.
Logo descobri que eles estavam mais ainda. Pilotos têm sangue-frio e reflexos rápidos, mas Lepore e Paladino foram indiciados pela PF e não estão nada habituados com entrevistas e jornalistas. E o mais tenso era o advogado americano Robert Torricella, que parecia uma leoa cuidando da cria.
Mas quem estava ali não era uma delegada, oficial da FAB, juíza, promotora, nem, claro, advogada. Jornalistas reportam (ou "escrevem histórias", em inglês), comentam, opinam e, no caso, fazem perguntas que centenas, milhares de pessoas gostariam de fazer.
A entrevista, que a Folha publica hoje, é mais uma peça para compor o quebra-cabeça, lembrando que acidentes aéreos -especialmente o choque de dois aviões no ar, considerado "praticamente impossível"- nunca têm uma causa só. São o somatório de falhas materiais, operacionais e humanas. Uma corrida de obstáculos às avessas, em que os equipamentos e procedimentos de segurança para "consertar" eventuais erros vão caindo, um a um. As investigações, aliás, têm essa finalidade: identificar as falhas para aprimorar a prevenção.
Neste caso, a comissão poderá sugerir: 1) o transponder (já nosso velho conhecido) deverá disparar um alarme para os pilotos quando inoperante; 2) a "strip eletrônica" dos radares deverá registrar as altitudes reais do vôo, e não mais ajustá-las automaticamente pelo plano de vôo, que é apenas virtual; 3) a área do acidente, que é controlada pelo Cindacta-1, de Brasília, mas de fato vista pelo 4, de Manaus, deverá passar ao controle de Manaus.
Nada disso trará de volta as vítimas do vôo 1907, mas pode evitar que haja novas. É bom mesmo.


"Rádio funcionava", dizem pilotos do Legacy

De volta aos Estados Unidos, Jan Paladino e Joe Lepore reafirmam que seguiram plano ditado pelo controlador de vôo

Americanos fazem críticas às autoridades brasileiras e afirmam que não dá para garantir que transponder estava inoperante no ar

ELIANE CANTANHÊDE
ENVIADA ESPECIAL A NOVA YORK

Na primeira entrevista a um jornal e também à imprensa brasileira, os pilotos americanos Joe Lepore e Jan Paladino, do Legacy que se chocou em 29 de setembro com o Boeing da Gol, na maior tragédia da aviação brasileira, disseram que o rádio do jato "funcionava bem, perfeitamente bem", apesar de quase 30 tentativas malsucedidas entre eles e o Cindacta-1, o centro de controle de Brasília. O advogado americano Robert Torricella, que participou ativamente da entrevista, concedida na última sexta, num hotel de Nova York, fez constantes sinais aos clientes, especialmente quando poderiam criticar o Brasil, as autoridades ou o sistema de vôo. E respondeu a várias perguntas feitas a seus clientes. Exigiu, inclusive, que as duas fitas da conversa lhe fossem entregues assim que transcritas em português no mesmo dia. Assumiu compromisso de destrui-las, sem uso na investigação. Lepore, 42, nascido na Itália, filho de italianos, mudou-se para os EUA aos sete anos, é casado e tem dois filhos. Paladino, 34, pai argentino e mãe espanhola, também é casado, sem filhos. (ELIANE CANTANHÊDE)

FOLHA - Vocês conheciam bem o Legacy? Quanto tinham voado nele?
JOE LEPORE
- Sou piloto há 20 anos, treinei 20 horas no simulador e, além disso, tenho voado há bastante tempo em aviões bem semelhantes. O equipamento me era muito familiar.
JAN PALADINO - Sou piloto há 16 anos, tinha voado bastante como comandante no Embraer 145, cópia exata do Legacy.

FOLHA - Vocês estudaram adequadamente a rota e o plano de vôo?
LEPORE
- Eu olhei previamente diferentes possibilidades que poderiam nos dar no plano de vôo e, quando chegou, olhei detalhadamente com o Jan e digitei os pontos de navegação em nosso sistema de computador.

FOLHA - Então vocês sabiam que seria contramão voar em altitude ímpar entre Brasília e Manaus?
ROBERT TORRICELLA
- A questão é outra. É bastante comum que aeronaves tenham autorização para voar em altitudes não regulares ou padrão, isso depende dos centros de controle.

FOLHA - Como foi a autorização em São José? O que o controlador disse?
TORRICELLA
- Isso está sob investigação, eles não podem reproduzir a conversa, está sob sigilo.

FOLHA - Então, qual foi a autorização que receberam em São José?
LEPORE
- Eles me autorizaram a voar a 37 mil pés até Manaus.

FOLHA - Você concluiu que deveria ir nessa altitude todo o tempo?
LEPORE
- Se quisessem que fizéssemos algo diferente, teriam dito.

FOLHA - Há dúvida se houve falha de comunicação entre a torre, que pode ter falado num só nível até Brasília, e os pilotos, que entenderam uma só altitude até Manaus.
TORRICELLA
- Não há nenhuma dúvida de que o controle de São José deu uma "clearance" para Manaus voando em 370 [37 mil pés]. A "clearance" se tornou o plano de vôo em vigor, e a lei exige que eles sigam isso. As regras são as mesmas no Brasil, nos EUA e internacionalmente.

FOLHA - O relatório preliminar disse que houve quase 30 tentativas frustradas de contato por rádio, sete dos controladores, o resto de vocês.
PALADINO
- Posso garantir que nossos rádios estavam funcionando apropriadamente, tanto que recebíamos transmissões em português de Brasília durante todo o vôo.

FOLHA - No relatório da PF, eles dizem que o transponder ficou desligado por 50 minutos. Por quê?
PALADINO
- Não vimos nenhuma prova de que o transponder estava inoperante, poderia ser outro problema.
TORRICELLA - Esse é o problema com a investigação da polícia. Os investigadores concluem coisas antes que os investigadores aeronáuticos, que são profissionais.

FOLHA - A polícia os indiciou dizendo que há um diálogo entre vocês na caixa-preta confirmando que ambos sabiam que o transponder estava fora do ar. Qual foi esse diálogo?
TORRICELLA
- Como sempre dissemos, nós não pretendemos tornar públicos detalhes específicos das gravações. Mas Joe e Jan já responderam que o transponder estava ok.

FOLHA - Como foi esse período [no Brasil]?
LEPORE
- Muito duro. Não sabíamos o que acontecia dia após dia, todas aquelas acusações sendo feitas.
PALADINO - Foi um tempo muito emocional e aquelas acusações contra nós... Em respeito às famílias, ficamos em silêncio. Nós queríamos que os fatos surgissem, sabíamos que isso eliminaria as falsas acusações. Nunca pensamos que ficaríamos tanto tempo detidos no Brasil. Assim, nós tínhamos medo. A nossa liberdade estava sendo tirada de nós.

Arquivo do blog