Entrevista:O Estado inteligente

domingo, dezembro 03, 2006

DANUZA LEÃO Sem ilusões

Mas quando o prédio ficou pronto, se esqueceu de que ele, tão importante durante uma temporada, existia

UM DIA ELA comprou um apartamento na planta. Ficava horas rabiscando se o quarto ia ter dez centímetros a mais para lá ou para cá, se a cozinha ia ser de fórmica ou de tijolo aparente, essas bobagens.
Quando as paredes subiram, ela visitava a obra pelo menos três vezes por semana. Ficou tudo como ela queria, mas o que lhe deu mais prazer foram os banheiros. Conseguiu encontrar uns azulejos pintados, mas os desenhos precisavam casar.
Deu sorte: havia um operário magrinho, humilde e muito paciente. Ele usava calças e camisas velhas; camisas, não camisetas, certamente herdadas, e calçava tamancos. Dia sim dia não ela ia verificar o andamento da obra e saía encantada; tudo estava exatamente como ela havia imaginado.
Quando o apartamento ficou pronto, foi aquela festa: os móveis foram para seus lugares, as roupas arrumadas nos armários, os quadros pendurados nas paredes, tudo como ela havia sonhado, uma felicidade.
Na frente do prédio havia um jardim, e numa tarde de domingo, quando levou o cachorro para passear, viu um homem sentado num banco. "Eu conheço essa cara", ela pensou, mas não conseguia lembrar de onde. Ele estava sozinho, vestido modestamente, e não a viu; olhava, com a maior atenção, para o prédio onde ela morava.
Ela andou, deu voltas, mas pensando no homem, que continuava tranqüilamente sentado, olhando. Foi quando caiu a ficha. Era ele, o azulejeiro com quem ela conviveu durante tanto tempo; não chegaram nem a fazer uma camaradagem -até porque ele era muito calado e respeitoso-, mas quando duas pessoas se vêem a cada dois dias, alguma relação se estabelece, é claro. Mas quando o prédio ficou pronto, ela se esqueceu de que ele -tão importante na sua vida durante uma boa temporada- existia.
Mas ali estava ele, provavelmente já trabalhando em outra obra; naquela tarde de domingo em que estava de folga, foi, sozinho, sentar num banco de jardim para olhar o prédio que havia ajudado a construir e onde jamais teria a chance de entrar. Se chegasse muito perto da entrada, o porteiro talvez chamasse a polícia.
Ela ficou mal; não era o caso de chegar perto dele, estender a mão, perguntar por onde tinha andado, pois já sabia: colocando azulejos em outros banheiros de outros prédios nos quais, depois que ficassem prontos, também jamais entraria. Ficou pensando: o que é que ele estava fazendo ali no seu único dia de folga da semana, quando poderia estar num cinema, tomando uma cerveja com um amigo ou dando um mergulho no mar?
E entendeu: ele foi ver sua obra concluída, com o orgulho que tem qualquer trabalhador -que seja um artista, um operário da construção civil ou um intelectual- de ver seu trabalho pronto e bem feito.
Ela sentiu ali toda a injustiça do mundo; não era o caso de convidá-lo para subir, sentar no seu sofá de plumas, oferecer um refrigerante e mostrar a casa pronta. Não podia também passar por ele e dizer "oi, tudo bem, o que você está fazendo por aqui?", e ficar tudo por isso mesmo. Fez o pior: fingiu que não o tinha visto, e sentiu o quanto esse mundo não vale nada.

Arquivo do blog