Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, dezembro 19, 2006

DANIEL PIZA

Melhores do ano
fonte: O Estado de São Paulo 17 de dezembro de 2006
Algumas características da lista de melhores livros do ano voltam a se repetir. Primeiro, a não-ficção tem produzido número maior de obras de qualidade, como biografias e ensaios. Segundo, o mercado editorial brasileiro tem oferecido novas traduções e reedições de alto padrão. Mas isso não significa que não haja boa ficção. Os melhores romances estrangeiros que li no ano foram Neve, de Orhan Pamuk, Travessuras da Menina Má, de Mario Vargas Llosa, e Everyman, de Philip Roth, este ainda não traduzido. E acabo de ler uma coletânea de contos, Sinistros com Fogo, do americano David Means, que faz pensar em John Cheever e J.D. Salinger.

No Brasil, o gênero chamou mais atenção, embora num patamar abaixo: contos de Rubens Figueiredo, Paulo Bentancur e Menalton Braff ganharam neste final de ano a competição de veteranos como Rubem Fonseca (Ela) e Dalton Trevisan (Macho não Ganha Flor) – em ambos, concisas e irônicas histórias do universo masculino, prestes a explodir em erotismo e violência, mas sem o nível de suas melhores obras, assim como João Gilberto Noll em A Máquina de Ser. Quanto a romances, Cony e Moacyr Scliar também compareceram. Entre os jovens, Daniel Galera (Mãos de Cavalo) estreou bem e Michel Laub (O Segundo Tempo) amadureceu. Ano sem Milton Hatoum nem Bernardo Carvalho complica.

Duas biografias de brasileiros garantiram bom ano nessa gôndola: O Banqueiro do Sertão, de Jorge Caldeira, que explorou a riqueza de seu personagem, Guilherme Pompeu de Almeida, até a última moeda de prata; e O Inimigo do Rei, de Lira Neto, sobre José de Alencar e suas brigas com Dom Pedro II. E comecei a ler Montenegro, de Fernando Morais, sobre o fundador dos Correios e do ITA, e ainda não li a de Roberto Carlos por Paulo César Araújo. O gênero também foi pródigo em autores estrangeiros: além dos tiranos Stalin (Volkogonov e Montefiore), Mao (Halliday e Chang) e Lenin (Service), personagens como Tocqueville, Descartes e Hardy foram temas de livros elogiados no exterior que ainda lerei. E tivemos a autobiografia Things I Didn’t Know, de Robert Hughes, com sua deliciosa mescla de erudição e fofoca.

Foi um grande ano também para os ensaios, como o lindo Marca d’Água, de Joseph Brodsky, sobre Veneza; On Late Style, livro inacabado de Edward Said sobre o estilo tardio de músicos e escritores; a crítica de arte de Arthur Danto e John Updike; e as polêmicas de Christopher Hitchens e Paul Johnson. O destaque, no entanto, é para os literários: O Último Leitor, de Ricardo Piglia, A Biblioteca à Noite, de Alberto Manguel, A Voz do Escritor, de A. Alvarez, o segundo volume dos Ensaios Reunidos de Carpeaux e A Linguagem de Shakespeare, de Frank Kermode. O bardo inglês acaba de receber da Nova Aguilar uma das edições mais importantes em língua portuguesa, o primeiro volume de suas peças traduzidas por Bárbara Heliodora. Ficções de Gombrowicz, Felisberto Hernandez, Isaac Bábel, Roberto Bolaño, Yasunari Kawabata e Lawrence Durrell, entre outras, ganharam abrigo na língua nacional. A filosofia também: Benedeto Croce, Thomas Kuhn e, acima de tudo, as Passagens de Walter Benjamin.

A fotografia foi brindada entre quatro capas com Cidades Reveladas, de Cristiano Mascaro, Presenças, de Juan Esteves, as recordações de Paulo Autran em Sem Comentários e Brasil – Um Século de Futebol e Magia, que, num ano em que o esporte deveria ter se destacado, foi o melhor lançamento ao lado do Guia Cult para a Copa do Mundo. O jornalismo ganhou coletâneas importantes como a do Pasquim; no mundo, a principal foi The Looming Tower, de Lawrence Wright, sobre a política americana pós-11/9. A ciência foi prestigiada na forma de introduções como Big Bang, de Simon Singh, sobre a origem do Universo; de controvérsia sobre religião, como The God Delusion, de Richard Dawkins; e da questão ambiental, como A Vingança de Gaia, de James Lovelock.

Se você ainda precisa de sugestões para presente, há quadrinhos: o Kafka de Robert Crumb, que entende o humor do autor de Metamorfose, e o Mozart de Milo Manara, que entende o erotismo do autor de As Bodas de Fígaro. Mas a cada semana de seu ano havia um bom livro à sua espera.

DE LA MUSIQUE

A oferta musical não fica atrás. Nesta semana tenho ouvido Orphans, caixa com três CDs de Tom Waits, dos quais o segundo, Bastards, tem uma canção melhor que a outra, melodias em tom sépia como o do papel do encarte. Elvis Costello fez mais dois bons CDs, em destaque The River in Reverse, com Allen Toussaint, sobre os estragos do Katrina. Thom Yorke, The Raconteurs e Bob Dylan deram vida ao rock, e a canção mais pop do ano é sem dúvida Crazy, de Gnarls Barkley. Cantoras como K.D. Lang, Madeleine Peyroux e nossa Cibelle deram o ar de sua graça e voz, e a grande sensação foi uma harpista, Joanna Newson.

No jazz, além de Toots Thielemans e Branford Marsalis, o ano foi de novo de Brad Mehldau, que lançou três CDs, o melhor House on Hill. Chico Buarque e Caetano Veloso lançaram discos, mas o melhor da MPB foi Rosa, de Rosa Passos, além de Ode Descontínua, de Zeca Baleiro sobre Hilda Hilst, e os dois de Maria Bethânia. A canção do ano é Amendoeira, de Marcelo Camelo, gravada por seu tio Bebeto Castilho em CD do mesmo nome. Instrumental: Dois Panos para Manga, de João Donato e Paulo Moura. O belo momento do gênero no Brasil também foi consagrado pelo show em homenagem a Baden Powell que vi no Sesc Pompéia.

Na chamada música erudita, dois brasileiros me deram grande prazer: Nelson Freire tocando as sonatas para piano de Beethoven; Antonio Meneses com seu Schumann & Schubert. O ano de Mozart ganhou CDs bonitos como o de Anne-Sophie Mutter, a violinista, e concertos em São Paulo da pianista Maria João Pires e do maestro Marc Minkowsky. Perdi o Bach de Ilya Gringolts, também violinista, cuja técnica “seca” me agrada muito. Mas não perdi o Quarteto Borodin celebrando Shostakovitch no Festival de Campos do Jordão, que o maestro Roberto Minczuk trouxe de volta aos bons tempos.

CADERNOS DO CINEMA

Os melhores filmes não ocuparam o mesmo degrau, mas, depois do pacote do Oscar – Crash, Capote, Munique –, deu para se divertir com Ponto Final, de Woody Allen, Volver, de Almodóvar, e Os Infiltrados, de Martin Scorsese. E, claro, com Era do Gelo 2. (Estou ansioso para ver os filmes novos de Clint Eastwood e Babel, de Iñárritu.) Gostei muito de Cachê, de Michael Haneke, em que o intelectual Georges (o sofisticadamente intenso Daniel Auteuil) tenta reprimir uma culpa de infância – a humilhação de empregado argelino – e acaba traindo seus preconceitos; parece um conto francês, cheio de subentendidos, com uma cena fortíssima que lança sombra sobre tudo que veio antes e depois. O cinema brasileiro se salvou com O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger, e O Céu de Suely, de Karim Aïnouz. Precisamos de mais filmes acessíveis e apurados como esses, cada um em sua dosagem.

A ARTE DE EXPOR

Fotos tiveram grande ano: Pierre Verger, Marc Ferrez, Mascaro e muitos mais. E dos Deuses Gregos na Faap e da arte pré-colombiana no CCBB até Calder no Brasil na Pinacoteca e os 50 anos da arte concreta, dos dinossauros do Araripe ao acervo do MAM na Oca, a cidade teve de tudo, inclusive o início de um Instituto de Arte Contemporânea com obras de Sérgio Camargo e Mira Schendel; e em 2007 recebe outra que apreciei muito no Rio, Aleijadinho e Seu Tempo. Mas a exposição do ano, para mim, foi a retrospectiva de Volpi no MAM. Ele e Iberê Camargo, que ganhou catálogo completo de gravuras (coordenado por Mônica Zielinsky), são meus artistas brasileiros preferidos.

O MUNDO É UM PALCO

Com bebê em casa, não pude ir o tanto que queria aos teatros. Mas, do que vi, a montagem mais satisfatória foi a de O Avarento, de Molière, por Felipe Hirsch, com Paulo Autran. E do repertório brasileiro, por falta de concorrência, A Pedra do Reino, de Antunes Filho, com o bom Lee Thalor.

POR QUE NÃO ME UFANO

E, por falar em tiranos, Pinochet morreu e ganhou estranhos comentários na imprensa brasileira, na linha “Melhorou a economia, mas”... A economia melhorou porque ele chamou a turma de Milton Friedman, que criou ferramentas monetárias e fiscais (como, no Brasil, Bulhões e Campos antes do milagre econômico do governo Médici), e depois quando se fez a reforma da Previdência e outras. Mas regimes autoritários, passado o surto dos primeiros anos, não conseguem sustentar desenvolvimento por muito tempo, e a prova está nas medidas tomadas já no período democrático para dar ao Chile a condição que tem hoje, apesar de problemas.

Pinochet, outro provinciano mimado, subintelectual e antimoderno, era um tirano completo. Se matou muito menos do que Mao, Stalin e outros, não foi menos execrável. Crueldade não cabe em números.

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