fonte: O Estado de São Paulo | 17 de dezembro de 2006 |
No Brasil, o gênero chamou mais atenção, embora num patamar abaixo: contos de Rubens Figueiredo, Paulo Bentancur e Menalton Braff ganharam neste final de ano a competição de veteranos como Rubem Fonseca (Ela) e Dalton Trevisan (Macho não Ganha Flor) – em ambos, concisas e irônicas histórias do universo masculino, prestes a explodir em erotismo e violência, mas sem o nível de suas melhores obras, assim como João Gilberto Noll em A Máquina de Ser. Quanto a romances, Cony e Moacyr Scliar também compareceram. Entre os jovens, Daniel Galera (Mãos de Cavalo) estreou bem e Michel Laub (O Segundo Tempo) amadureceu. Ano sem Milton Hatoum nem Bernardo Carvalho complica.
Duas biografias de brasileiros garantiram bom ano nessa gôndola: O Banqueiro do Sertão, de Jorge Caldeira, que explorou a riqueza de seu personagem, Guilherme Pompeu de Almeida, até a última moeda de prata; e O Inimigo do Rei, de Lira Neto, sobre José de Alencar e suas brigas com Dom Pedro II. E comecei a ler Montenegro, de Fernando Morais, sobre o fundador dos Correios e do ITA, e ainda não li a de Roberto Carlos por Paulo César Araújo. O gênero também foi pródigo em autores estrangeiros: além dos tiranos Stalin (Volkogonov e Montefiore), Mao (Halliday e Chang) e Lenin (Service), personagens como Tocqueville, Descartes e Hardy foram temas de livros elogiados no exterior que ainda lerei. E tivemos a autobiografia Things I Didn’t Know, de Robert Hughes, com sua deliciosa mescla de erudição e fofoca.
Foi um grande ano também para os ensaios, como o lindo Marca d’Água, de Joseph Brodsky, sobre Veneza; On Late Style, livro inacabado de Edward Said sobre o estilo tardio de músicos e escritores; a crítica de arte de Arthur Danto e John Updike; e as polêmicas de Christopher Hitchens e Paul Johnson. O destaque, no entanto, é para os literários: O Último Leitor, de Ricardo Piglia, A Biblioteca à Noite, de Alberto Manguel, A Voz do Escritor, de A. Alvarez, o segundo volume dos Ensaios Reunidos de Carpeaux e A Linguagem de Shakespeare, de Frank Kermode. O bardo inglês acaba de receber da Nova Aguilar uma das edições mais importantes em língua portuguesa, o primeiro volume de suas peças traduzidas por Bárbara Heliodora. Ficções de Gombrowicz, Felisberto Hernandez, Isaac Bábel, Roberto Bolaño, Yasunari Kawabata e Lawrence Durrell, entre outras, ganharam abrigo na língua nacional. A filosofia também: Benedeto Croce, Thomas Kuhn e, acima de tudo, as Passagens de Walter Benjamin.
A fotografia foi brindada entre quatro capas com Cidades Reveladas, de Cristiano Mascaro, Presenças, de Juan Esteves, as recordações de Paulo Autran em Sem Comentários e Brasil – Um Século de Futebol e Magia, que, num ano em que o esporte deveria ter se destacado, foi o melhor lançamento ao lado do Guia Cult para a Copa do Mundo. O jornalismo ganhou coletâneas importantes como a do Pasquim; no mundo, a principal foi The Looming Tower, de Lawrence Wright, sobre a política americana pós-11/9. A ciência foi prestigiada na forma de introduções como Big Bang, de Simon Singh, sobre a origem do Universo; de controvérsia sobre religião, como The God Delusion, de Richard Dawkins; e da questão ambiental, como A Vingança de Gaia, de James Lovelock.
Se você ainda precisa de sugestões para presente, há quadrinhos: o Kafka de Robert Crumb, que entende o humor do autor de Metamorfose, e o Mozart de Milo Manara, que entende o erotismo do autor de As Bodas de Fígaro. Mas a cada semana de seu ano havia um bom livro à sua espera.
DE LA MUSIQUE
A oferta musical não fica atrás. Nesta semana tenho ouvido Orphans, caixa com três CDs de Tom Waits, dos quais o segundo, Bastards, tem uma canção melhor que a outra, melodias em tom sépia como o do papel do encarte. Elvis Costello fez mais dois bons CDs, em destaque The River in Reverse, com Allen Toussaint, sobre os estragos do Katrina. Thom Yorke, The Raconteurs e Bob Dylan deram vida ao rock, e a canção mais pop do ano é sem dúvida Crazy, de Gnarls Barkley. Cantoras como K.D. Lang, Madeleine Peyroux e nossa Cibelle deram o ar de sua graça e voz, e a grande sensação foi uma harpista, Joanna Newson.
No jazz, além de Toots Thielemans e Branford Marsalis, o ano foi de novo de Brad Mehldau, que lançou três CDs, o melhor House on Hill. Chico Buarque e Caetano Veloso lançaram discos, mas o melhor da MPB foi Rosa, de Rosa Passos, além de Ode Descontínua, de Zeca Baleiro sobre Hilda Hilst, e os dois de Maria Bethânia. A canção do ano é Amendoeira, de Marcelo Camelo, gravada por seu tio Bebeto Castilho em CD do mesmo nome. Instrumental: Dois Panos para Manga, de João Donato e Paulo Moura. O belo momento do gênero no Brasil também foi consagrado pelo show em homenagem a Baden Powell que vi no Sesc Pompéia.
Na chamada música erudita, dois brasileiros me deram grande prazer: Nelson Freire tocando as sonatas para piano de Beethoven; Antonio Meneses com seu Schumann & Schubert. O ano de Mozart ganhou CDs bonitos como o de Anne-Sophie Mutter, a violinista, e concertos em São Paulo da pianista Maria João Pires e do maestro Marc Minkowsky. Perdi o Bach de Ilya Gringolts, também violinista, cuja técnica “seca” me agrada muito. Mas não perdi o Quarteto Borodin celebrando Shostakovitch no Festival de Campos do Jordão, que o maestro Roberto Minczuk trouxe de volta aos bons tempos.
CADERNOS DO CINEMA
Os melhores filmes não ocuparam o mesmo degrau, mas, depois do pacote do Oscar – Crash, Capote, Munique –, deu para se divertir com Ponto Final, de Woody Allen, Volver, de Almodóvar, e Os Infiltrados, de Martin Scorsese. E, claro, com Era do Gelo 2. (Estou ansioso para ver os filmes novos de Clint Eastwood e Babel, de Iñárritu.) Gostei muito de Cachê, de Michael Haneke, em que o intelectual Georges (o sofisticadamente intenso Daniel Auteuil) tenta reprimir uma culpa de infância – a humilhação de empregado argelino – e acaba traindo seus preconceitos; parece um conto francês, cheio de subentendidos, com uma cena fortíssima que lança sombra sobre tudo que veio antes e depois. O cinema brasileiro se salvou com O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger, e O Céu de Suely, de Karim Aïnouz. Precisamos de mais filmes acessíveis e apurados como esses, cada um em sua dosagem.
A ARTE DE EXPOR
Fotos tiveram grande ano: Pierre Verger, Marc Ferrez, Mascaro e muitos mais. E dos Deuses Gregos na Faap e da arte pré-colombiana no CCBB até Calder no Brasil na Pinacoteca e os 50 anos da arte concreta, dos dinossauros do Araripe ao acervo do MAM na Oca, a cidade teve de tudo, inclusive o início de um Instituto de Arte Contemporânea com obras de Sérgio Camargo e Mira Schendel; e em 2007 recebe outra que apreciei muito no Rio, Aleijadinho e Seu Tempo. Mas a exposição do ano, para mim, foi a retrospectiva de Volpi no MAM. Ele e Iberê Camargo, que ganhou catálogo completo de gravuras (coordenado por Mônica Zielinsky), são meus artistas brasileiros preferidos.
O MUNDO É UM PALCO
Com bebê em casa, não pude ir o tanto que queria aos teatros. Mas, do que vi, a montagem mais satisfatória foi a de O Avarento, de Molière, por Felipe Hirsch, com Paulo Autran. E do repertório brasileiro, por falta de concorrência, A Pedra do Reino, de Antunes Filho, com o bom Lee Thalor.
POR QUE NÃO ME UFANO
E, por falar em tiranos, Pinochet morreu e ganhou estranhos comentários na imprensa brasileira, na linha “Melhorou a economia, mas”... A economia melhorou porque ele chamou a turma de Milton Friedman, que criou ferramentas monetárias e fiscais (como, no Brasil, Bulhões e Campos antes do milagre econômico do governo Médici), e depois quando se fez a reforma da Previdência e outras. Mas regimes autoritários, passado o surto dos primeiros anos, não conseguem sustentar desenvolvimento por muito tempo, e a prova está nas medidas tomadas já no período democrático para dar ao Chile a condição que tem hoje, apesar de problemas.
Pinochet, outro provinciano mimado, subintelectual e antimoderno, era um tirano completo. Se matou muito menos do que Mao, Stalin e outros, não foi menos execrável. Crueldade não cabe em números.