Nada como lembrar o passado recente para descrever o presente. Quase um ano depois do espetáculo da compra e venda de votos ou distribuição farta de mesadas a parlamentares para reforçar o governo Lula no Congresso, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, se entronizava na presidência do Tribunal Superior Eleitoral. Ao assumir a tarefa de administrar a eleição deste ano, fez sucesso com o discurso em que definiu o Brasil como o país do faz-de-conta. Nessa nação que se inspirava na literatura infantil fingia-se que os mandatos eram sérios e não balcão de negócios. No reino da imaginação acreditava-se que por aqui não havia escândalos. Marcos Valério, o gerente financeiro da quadrilha do mensalão, Delúbio Soares e cia. ilimitada eram personagens fictícios. Simulava-se viver uma democracia real. Na ocasião, a rica retórica do ministro mereceu elogios de todos os lados.
Na quinta-feira, o togado Marco Aurélio chancelou o país do faz-de-conta eleitoral ao relatar o processo que garantiu vida longa aos partidos nanicos e legalizou, no mínimo, o comércio de legendas. Ao considerar "esdrúxula" e "injusta" a lei que reduziria de 29 para sete as siglas com direito ao total exercício da atividade parlamentar, o ministro do Supremo e seus pares, por unanimidade, institucionalizaram a esbórnia partidária. Ao defenderem o direito das "minorias" políticas de receberem um quinhão dos R$ 120 milhões do fundo partidário este ano e de terem assegurado tempo de propaganda nos meios eletrônicos de comunicação, os supremos juízes do país decretaram o fim da responsabilidade no exercício da atividade política.
A partir de agora é legal fazer de conta que o Partido de Mobilização Nacional (PMN) é de verdade. Que o PCdoB tem mais a apresentar ao país do que Aldo Rebelo, o presidente da Câmara. Que o Prona é tão ou mais sério que seu artífice, o folclórico Enéas, e suas donas Suelis da vida. Pior, faz de conta que a democracia tupiniquim se aproximará da perfeição nas disputas majoritárias, em debates que reunirão mais de uma dezena de interessados em se tornar prefeitos, governadores e presidente da República. Tão plena de exemplar exercício político que ninguém precisará perder tempo ouvindo o que pensam e defendem os senhores candidatos do PTN, PSC, P....
No esforço de evitar o "massacre das minorias", como definiu a regra que estabelecia os limites da sobrevivência partidária, o ministro Marco Aurélio passou a cal sobre um processo detonado, por ironia, no Parlamento em 1995. Ao aprovar os limites da atuação das legendas, deputados e senadores deram tempo às siglas para se adaptarem às normas ao longo das disputas eleitorais. Além disso, abriram a possibilidade de sobrevivência dos benefícios para os pequenos partidos na Câmara e no Senado com a formação de movimentos, como o que reuniu, no mês passado, o PPS, o PMN e o PHS. Ao contrário do que pensam os ministros do Supremo, nem a possibilidade de ascensão de Aldo Rebelo ao comando da Câmara seria impossível com a manutenção da cláusula barreira porque a eleição para a presidência da Casa independe de respaldo partidário. Atrela-se, na verdade, a acordos políticos e à capacidade de arregimentação de um lado ou de outro.
O exercício partidário volta ao que era antes. A festa do aluguel de legendas ganhou reforço. As travas para a sobrevivência das siglas foram detonadas pelos guardiães da lei sob o argumento de que enterrariam o princípio constitucional da isonomia. Isonomia não se impõe. Não se pode, nem se deve, tratar os diferentes como iguais. Esse é o princípio da democracia. Sem faz-de-conta.