Atrasos na produção do Airbus A380
mostram que a política pode matar
até as melhores idéias comerciais
Antonio Ribeiro, de Paris
P. Masclet/Airbus |
O A380 em teste de resistência no gelo: as vendas não esquentam |
Durante 170 horas no mês passado, a Airbus tirou o novo Jumbo de cabine dupla A380 da fábrica em Toulouse, na França, e o fez voar para dez aeroportos asiáticos. O objetivo foi fazer um show promocional da última etapa de certificação do maior avião comercial de todos os tempos. O avião é seguro para os 550 passageiros que pode carregar. Insegura anda a companhia. O consórcio aeroespacial europeu frustrou seus clientes ao adiar em dois anos a entrega dos A380, cujo orçamento, de 12 bilhões de euros, já está 30% acima do previsto. Outro modelo menor, feito para competir diretamente com o Boeing 787 Dreamliner, só existe no papel. O concorrente americano, enquanto isso, tem 435 encomendas. É a primeira vez, desde a virada do século, que a Airbus tem menos encomendas de aviões do que a arqui-rival Boeing.
A Airbus justificou o atraso na produção do A380 alegando incompatibilidade nos sistemas de computadores da linha de produção, em especial na defasagem tecnológica entre os sistemas usados pelos técnicos franceses e alemães. A idéia de oferecer aviões sob medida também se mostrou, no caso do A380, um problema muito maior do que se imaginou a princípio. As questões técnicas escondem algo muito mais grave: a pane de governança corporativa que está paralisando a companhia. A Airbus é um consórcio de empresas aeroespaciais da França, Alemanha, Espanha e Inglaterra. É tocada com dinheiro do contribuinte e, quando foi criada, em 1970, deveria ser um modelo para o mundo, uma vitrine da via européia de produção compartilhada e eficiente. A Airbus é hoje palco de disputas políticas, interesses nacionais e rivalidades internas. Seu controlador, o European Aeronautic Defence and Space (Eads), está mais interessado em estratégias políticas do que em vender aviões. Tornou-se uma babel. Os cargos de direção são distribuídos proporcionalmente entre os acionistas majoritários. Para cada executivo sênior alemão há um equivalente francês. Se o chefe de um departamento é francês, ele deve ser supervisionado por um alemão, e vice-versa. Para quem passou quase dois séculos em guerras fratricidas, o avanço na convivência é notável. Mas comercialmente não existe muita vantagem. A Boeing pode comprar, mais baratos, componentes dos aviões no Brasil, na China ou na Coréia do Sul. A Airbus não pode. Os governantes europeus pressionam para que a produção permaneça nas dezesseis fábricas do continente. Assim preservam os 51.000 empregos, os 3.000 fornecedores locais e a paz sindical. Mas obviamente perde competitividade.
A americana FedEx, que entrega 3,2 milhões de pacotes diariamente, está construindo um pólo regional de distribuição no novo aeroporto de Guangzhou, na China. O complexo deve entrar em operação em 2008. A FedEx contava como certa a entrega de dez A380 para a operação chinesa. Em outubro, porém, foi informada de que a Airbus só poderá entregar os aviões em 2010. "A ultima coisa de que precisamos na China é um hangar vazio," diz Fred Smith, presidente da FedEx. Resultado: a transportadora cancelou o pedido dos A380 e encomendou quinze Boeing 777 com capacidade de transportar metade da carga, mas com data de entrega garantida. Os atrasos da Airbus vão drenar 4,8 bilhões de euros da receita da empresa nos próximos quatro anos. A estimativa inicial de venda para cobrir os custos de investimento era de 270 unidades. As multas e os gastos em decorrência dos atrasos custaram mais 78,3 bilhões de euros. Agora, para que o sonho do A380 não se torne pesadelo, a Airbus precisa vender 420 aviões. Por enquanto, só 159 foram encomendados. Quando se contabilizam todos os custos decorrentes das circunstâncias especiais da Airbus, ela tem uma desvantagem competitiva de 20% em relação à Boeing.
As coisas não andam a contento para o consórcio europeu também na promissora linha de jatos com 250 a 350 passageiros, que devem dominar o mercado nas próximas duas décadas. Louis Gallois, co-presidente francês da Airbus, anunciou que sua aposta nesse segmento, o A350 XWB, tem a missão hercúlea de tirar o consórcio europeu do atoleiro. Para isso precisa enfrentar e ganhar do 787 Dreamliner, cuja produção já começou. A Airbus ainda não sabe bem nem como financiar a produção do A350 XWB. A idéia é usar a reserva de 2 bilhões de euros em caixa, queimar os lucros operacionais e ampliar o capital da empresa. Além disso, suprema heresia, metade dos componentes do novo avião seria encomendada a preços menores, obviamente, de fabricantes instalados em países fora da zona do euro. A engenharia financeira seria coroada com um misterioso e explosivo plano, o Power8, que prevê o fechamento de fábricas européias e o corte de empregados. O antecessor de Gallois tentou aplicá-lo. Em vão. Quem acabou demitido foi ele próprio. Terá dinheiro público no A350? Claro. "Ninguém pergunta como a Boeing financia seus aviões, o 787 Dreamliner foi altamente subvencionado e nós temos o direito de ter o mesmo tratamento. Vamos propor um acordo aos americanos na questão do subsídio. Se isso não for possível, resolveremos a questão na Organização Mundial do Comércio", disse Louis Gallois a VEJA.
Os grandes acionistas privados do consórcio, o grupo francês Lagardère e o alemão DaimlerChrysler, andam desconfiados. Eles começaram a se desfazer de suas ações. Não só eles. Está sob investigação judicial a venda de uma fatia de 2,5 milhões de euros de ações da Airbus pertencentes ao ex-presidente da empresa, Noël Forgeard, e a seus colegas de diretoria. As ações foram vendidas dias antes de a companhia anunciar os atrasos com a produção do A380. O anúncio provocou uma queda de 26% nas ações. A suspeita é que Forgeard e a turma usaram informações privilegiadas para salvar a própria pele. Coisa feia. Mas a prioridade agora é salvar as aparências, o que também não se faz sem luta política. O banco estatal francês Caisse des Dépôts se prontificou a comprar a metade das ações da Lagardère, o que daria ao governo francês o controle da companhia. O governo de Madri viu a chance de aumentar sua participação acionária de modo a pressionar para que os aviões tenham mais componentes produzidos por firmas espanholas. Por sua vez a chanceler alemã, Angela Merkel, anunciou que um grupo de quatro bancos alemães cumprirá o dever patriótico de manter a influência germânica nos destinos do consórcio. A xenofobia, o nacionalismo econômico e o protecionismo estão se combinando para tornar o horizonte da Airbus cada dia mais turvo.