Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 16, 2006

Cinema O Diabo Veste Prada, com Meryl Streep

VEJA
Uma atriz infernal

Meryl Streep é a melhor razão
(mas não a única) para assistir
ao venenoso O Diabo Veste Prada


Isabela Boscov


Meryl, como a temível Miranda: pose de czarina e métodos de dirigente soviético

No ambiente ultra-rarefeito da alta-costura e do prêt–porter para ricos, existe o consenso de que pouca gente manda mais do que a londrina Anna Wintour, editora da revista Vogue americana. Com um aceno de cabeça ou um franzir dos lábios, ela faz e desfaz carreiras, impõe ou enterra coleções e incute alegria ou temor divinos na alma de estilistas. Consta que Anna não escolhe apenas que lugar ela própria vai ocupar na platéia dos grandes desfiles; diz-se que ela decide também onde seus desafetos vão sentar, para que não a vejam nem sejam vistos por ela. Encarnar uma personalidade tão formidável não é tarefa para qualquer atriz. Na verdade, David Frankel, o diretor de O Diabo Veste Prada (The Devil Wears Prada, Estados Unidos, 2006), encontrou a única pessoa capaz de fazê-lo – Meryl Streep, que no filme que estréia nesta sexta-feira no país caminha pelos corredores da fictícia revista Runway como Catarina, a Grande a caminho da coroação e fuzila subalternos com a displicência de um dirigente soviético linha-dura. Meryl é um deleite: uma atriz sem rival que coloca tudo o que sabe a serviço de uma personagem com a qual ninguém tem peito de rivalizar.

Anne Hathaway, como a assistente Andy: sofrer para ser bela

O filme é uma adaptação do best-seller homônimo, escrito com muito humor e nítido espírito de revanche por uma ex-assistente de Anna Wintour, a americana Lauren Weisberger. O livro, que está na lista de mais vendidos de VEJA, conta como uma jornalista recém-formada, Andy Sachs (Anne Hathaway), troca seus ideais por um emprego como saco de pancadas da editora da Runway – e também por um guarda-roupa pelo qual vale a pena contemplar pelo menos as modalidades mais brandas de pactos faustianos. Todas as manhãs, sua chefe, batizada na versão ficcional de Miranda Priestly, entra no escritório e despeja a bolsa e o casaco sobre a cabeça da assistente, porque é prepotente demais para entregá-los nas mãos da moça. Durante meses, chama Andy pelo nome de sua outra assistente, Emily, porque julga que ela ainda não conquistou o direito a uma identidade separada. E, dia após dia, tortura todos à sua volta com censuras entregues num tom de voz quase inaudível. Lauren jura que Miranda não é um decalque de sua ex-chefe, e sim invenção sua. Não que alguém acredite. Miranda, é verdade, tem silhueta de mulher, e não de raio X (como o escritor Tom Wolfe descreveu as magérrimas nova-iorquinas dos estratos superiores), e seu penteado é branco-prata, em lugar dos cabelos escuros de Anna. Mas a prova de que todo o "mundinho" sabe que Miranda é Anna está nas várias grifes que não quiseram colaborar com o figurino do filme, por medo de represálias da Vogue.

Meryl e o veneno da trama não são os únicos acertos de O Diabo Veste Prada. Em geral, filmes que tratam do mundo da moda retratam seus integrantes como gente tonta e frívola, que só pensa em superfluidades quando há tanta coisa séria em curso no planeta – é o caso, por exemplo, do Prêt–Porter de Robert Altman. Essa condescendência está ausente deste filme: David Frankel sabe que pessoas como Anna Wintour, John Galliano ou Karl Lagerfeld, a despeito da pose e do visual exótico, são executivos que tomam decisões com ramificações globais e têm responsabilidades corporativas da ordem de bilhões de dólares. Pessoas, enfim, que em cada roupa, calçado e acessório que envergam têm de sinalizar suas formas específicas de poder e a extensão de sua rede de influências. Ver esse ambiente retratado dessa forma é refrescante. E o figurino, de fato, é de matar.

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