Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 08, 2006

VEJA Entrevista: Norah Vincent O macho não é mau

A jornalista americana conta o que
descobriu ao se disfarçar de homem
por quase dois anos para investigar
o sexo oposto

Marcelo Marthe

"Hoje tenho muito mais simpatia pelos homens e sei interpretar
atitudes que antes não compreendia, por confundi-las com arrogância"

Em 2003, a americana Norah Vincent pediu licença de seu posto de
colunista do jornal Los Angeles Times para devotar-se a um projeto
inusitado. Por quase dois anos, ela trocou sua identidade feminina
pela de um homem. Com um disfarce meticulosamente elaborado, da barba
artificial ao tom de voz, Norah – que é filósofa por formação –
infiltrou-se em vários ambientes masculinos. Ela conviveu com homens
da classe operária numa liga de boliche, freqüentou clubes de strip-
tease, internou-se num mosteiro, trabalhou numa empresa de vendas e
integrou-se a machões em crise num grupo de terapia. Seu objetivo era
investigar o comportamento e a psicologia dos homens pelo ponto de
vista de um observador de fora desse universo. O resultado é narrado
no livro Feito Homem (tradução de Magda Lopes; Planeta; 305 páginas;
34,90 reais), que fez sucesso nos Estados Unidos e agora chega ao
Brasil. Norah (nas fotos acima, como mulher e homem) trouxe à tona
impressões reveladoras sobre as diferenças entre os sexos, a crise da
masculinidade e as próprias mulheres. Nessa entrevista, ela conta
suas aventuras como Ned, seu alter ego masculino.

Veja – Os homens são mesmo ruins como se fala?
Norah – Ao ver de perto como os homens se comportam, desmontei a
idéia muito propalada entre as mulheres de que tudo na vida é mais
fácil para eles. Essa descoberta, confesso, foi um choque. A condição
sexual sempre foi vista como um peso muito maior para as mulheres do
que para os homens. As feministas queimaram sutiãs nos anos 60 para
exorcizar isso. Mas os homens também têm de corresponder a tudo que
se espera deles, o que pode resultar numa ansiedade brutal. Está na
hora de eles tomarem consciência de quanto as expectativas sociais –
inclusive das mulheres em relação a eles – os limitam. As feministas
podem torcer o nariz para essa idéia, mas eu vi a situação de perto e
acho que é preciso ser dito. De fato, toda essa experiência mudou a
minha visão sobre os homens. Hoje tenho muito mais simpatia por eles
e sei interpretar atitudes que antes não compreendia, por confundi-
las com arrogância ou insensibilidade.

Veja – O homem de hoje lida de forma mais relaxada com os valores da
masculinidade?
Norah – Fala-se muito nos metrossexuais, os homens que não têm medo
de se mostrar sensíveis. Mas as expectativas em relação aos homens
são as mesmas desde sempre: autocontrole emocional, convicções
firmes, independência. Ou seja: eles não devem demonstrar fraqueza ou
carência em público. Um homem também não é considerado pleno se não
for bem-sucedido no trabalho – por mais que se relevem suas falhas
nesse campo, ele será menos que um homem se não for assim. A verdade
é que, para um homem vencer na vida, os valores tradicionais ainda
são o parâmetro.

Veja – Como a senhora percebeu isso durante sua experiência como Ned?
Norah – Tome um velho atributo enaltecido pelos machões: a postura
incisiva. Na pele de Ned, descobri que os que exibem esse traço
tendem a ser mais respeitados e a obter mais o que querem. No
ambiente de trabalho, espera-se que os homens briguem de forma
agressiva por seu espaço e nunca demonstrem falta de confiança. Eles,
obviamente, também sentem suas fraquezas e têm dúvidas existenciais.
Mas aprenderam que um dos itens mais valiosos para a sobrevivência é
a capacidade de exibir uma couraça de autoconfiança. Quanto mais
conseguem ser convincentes, mais as coisas ficam sob seu controle,
pois as pessoas passam a acreditar nisso e a lhes delegar mais
responsabilidades. As mulheres têm muito que aprender com isso.
Depois de observá-los, eu mesma me dei conta de quanto vivia pedindo
desculpas e me diminuindo perante os outros.

Veja – A senhora diz que os homens, nas últimas décadas, foram
colocados numa posição defensiva e muitas vezes cultuam os valores
masculinos de forma envergonhada. Quais as conseqüências disso?
Norah – O homem goza de péssima reputação nos dias de hoje. O mundo
tende a ver a masculinidade como um desvio politicamente incorreto,
assim como vê os brancos ocidentais como vilões por terem colonizado
outros povos. Não faltam advogados de defesa dos negros e das
lésbicas, mas o macho branco ocidental – e heterossexual, claro – é
sempre demonizado. Espero que meu trabalho ajude a ver que é uma
bobagem enxergar o mundo por esse prisma estreito. Em minha opinião,
é preciso, sim, alargar os horizontes do que se convencionou chamar
de valores masculinos. Mas é um absurdo propor a simples extinção
deles, como parecem pregar algumas de minhas colegas feministas.

Veja – Como foi possível se passar por homem por quase dois anos sem
que seu disfarce fosse notado?
Norah – Tenho traços físicos que, provavelmente, tornaram esse
disfarce mais fácil para mim do que seria para a maioria das
mulheres. Sou, por exemplo, uma mulher alta. Mas nada disso teria
sido suficiente se eu não tivesse feito um esforço excruciante para
acreditar na persona que estava encarnando. Se eu não tivesse
incorporado a psicologia de Ned, minha versão masculina, não
adiantaria ter o melhor dos disfarces: as pessoas perceberiam a farsa
com um simples golpe de olhos.

Veja – Quais foram os maiores desafios para não trair sua identidade?
Norah – Do ponto de vista da caracterização, foi acertar o tom de
voz, sem dúvida. Sempre tive um timbre grave, mas uma professora da
Juilliard School (escola de música nova-iorquina) me ensinou formas
de respiração e ritmo que fazem toda a diferença entre os sexos. Os
homens tendem a usar palavras mais curtas e costumam esgotar todo o
ar dos pulmões numa frase, enquanto as mulheres têm uma respiração
mais entrecortada, o que dá maior dramaticidade ao que falam. Mas a
parte mais dura de minha empreitada foi conviver com os homens.
Comportar-me como um rapaz num meio 100% masculino revelou-se
incrivelmente difícil, pois tive de aprender a sufocar minhas emoções.

Veja – Por quê?
Norah – O jeito emotivo que as mulheres têm de encarar o mundo e se
relacionar com as pessoas é algo que não encontra lugar entre os
homens, assim como nossas expectativas em relação aos outros são bem
diferentes. Ao contrário das mulheres, que não se cansam de exprimir
o que sentem, os homens são criaturas fechadas que se entendem entre
si muitas vezes por meio de não mais que resmungos – ou mesmo o
silêncio, como comprovei ao participar de uma liga de brutamontes que
jogavam boliche. Sofri rejeição, porque os homens com quem convivi
volta e meia implicavam com meu jeito hesitante e tentavam me
corrigir. Eles às vezes achavam que havia algo de errado comigo,
porque eu não estava agindo do modo que consideravam normal num
macho. Mas na maior parte do tempo meu disfarce funcionou
perfeitamente. Quando eu ia a bares ou estava numa roda de amigos,
eles falavam das mulheres na minha frente de um modo franco como
nunca falariam se soubessem meu verdadeiro sexo. Eu me senti como uma
espiã infiltrada no sindicato do crime.

Veja – Como Ned, a senhora viveu várias experiências de paquera. É
mais fácil ser homem ou mulher nessa hora?
Norah – De forma geral, é mais fácil ser mulher. Pela natureza da
vida social, as mulheres têm de fazer menos esforço para se arranjar
– é só esperar até que os caras se aproximem e façam a corte. Se eles
tiverem a sorte de não levar um fora, precisarão ainda gastar muita
conversa – além de pagar a conta – antes de chegar aos finalmentes.
Como constatei ao buscar uma namorada, lidar com a rejeição é um dado
inescapável na vida dos homens. Deparei com sujeitos que aprenderam
com os pais um velho mandamento da masculinidade: um homem de verdade
não desiste nunca, não importa quantos foras tome.

Veja – Não é ilusório achar que as mulheres estão menos sujeitas à
rejeição?
Norah – Elas também têm dificuldades, mas esse é um dos campos em que
os homens se sentem menos poderosos que as mulheres. Ao ver de perto
as agruras dos rapazes, percebi que as mulheres poderiam tirar mais
vantagem de sua posição. Elas não imaginam o poder que suas opiniões
têm sobre a auto-estima masculina.

Veja – O que foi mais complicado: ir a um clube de strip-tease ou
achar uma namorada?
Norah – Passei poucas e boas em busca de uma namorada, mas nada se
compara às experiências nos clubes. Foi deprimente ir a lugares desse
tipo. Trata-se de um lado obscuro – e mal resolvido – da vida
masculina. Não há novidade, é claro, no fato de os homens pagarem
prostitutas para satisfazer um impulso meramente físico. Sei que é
complicado para eles se abrir com suas mulheres ou namoradas sobre
suas fantasias sexuais – 99% delas não entenderiam. Foi chocante,
contudo, descobrir que esse ritual muitas vezes é só uma válvula de
escape para uma vida vazia e cheia de hipocrisia – ou mesmo uma forma
de afirmação perante os amigos. Um dos homens que conheci deixava a
mulher com câncer terminal em casa e ia a um clube. Eu me surpreendi
ao ver como é comum que maridos dedicados freqüentem inferninhos pela
vida inteira, sem que a esposa desconfie.

Veja – E qual a sua impressão sobre arranjar uma namorada?
Norah – Um dos objetivos óbvios de meu estudo era obter uma visão
feminina do universo dos homens. Mas a experiência também serviu para
que eu visse traços nas mulheres que nunca havia percebido. Como Ned,
cortejei uma trintona que era o estereótipo da mulher mal-amada. Ela
fazia tudo para repelir seus pretendentes, como falar de casos que
não deram certo e mostrar fotos de família logo no primeiro encontro.
Por meio de figuras como ela, pude detectar alguns defeitos femininos
capazes de cortar a excitação de qualquer um. Não há nada mais
desestimulante que uma mulher que exala certo ar de superioridade
emocional e insiste em esfregar na cara do pretendente como os homens
a magoam.

Veja – A senhora conviveu com monges num mosteiro. O homem confinado
num ambiente de celibato é diferente dos demais?
Norah – Muito pelo contrário. Se há alguma diferença, é que as
dificuldades desses homens em se comunicar com os outros e suas
carências são ainda mais exacerbadas. Eles não podem demonstrar
quanto precisam de carinho e afeto, pois essa é a regra nesses
locais. É uma pena, porque para mim ficou patente que precisam muito
disso.

Veja – A senhora não temia ser desmascarada?
Norah – Eu ficava em pânico com isso. Temia até por minha integridade
física, especialmente quando me infiltrei no grupo de terapia – um
bando de marmanjos que não escondiam sua raiva das mulheres que os
oprimiam. Quanto mais eu fingia, mais me envolvia com esses homens, e
o fardo acabou se tornando pesado demais. Ao final, já não agüentava
me olhar no espelho e ver Ned na minha frente a cada manhã. Tive um
esgotamento nervoso e acabei num hospital.

Veja – Como foi a reação desses homens quando finalmente vieram a
saber da farsa?
Norah – Primeiro, eles ficavam embaraçados e se recusavam a acreditar
que eu era mulher. Depois, começavam a ver as coisas em retrospecto e
juntavam as pistas das quais não tinham se dado conta. "Ah, então é
por isso que Ned sempre foi tão bom confidente", diziam. Ou então:
"Está explicado por que Ned tinha um jeitinho gay que me incomodava".
O fascinante desse processo é que, tão logo vinham a saber que eu era
mulher, o modo como me tratavam mudava totalmente. Muitos relaxavam e
passavam a se abrir mais. Outros assumiam uma postura mais defensiva.
Eu tinha virado alguém de outra espécie, afinal.

Veja – Em algum momento a senhora ficou com vontade de ter nascido
homem?
Norah – Sou homossexual, mas nunca tive o desejo de ser algo
diferente do que sou. Sou mulher, programada biologicamente para agir
e pensar como qualquer outra pessoa de meu sexo. Isso não mudou
depois de minha experiência como Ned. Descobri que a realidade
oferece vantagens e armadilhas distintas para cada lado. A vida dos
homens pode ser muito dura, principalmente no aspecto emocional. Eles
são muito isolados em relação aos pais, irmãos, filhos e amigos, pois
não comungam sua intimidade com o mesmo desprendimento que as
mulheres têm umas com as outras. E, embora isso ajude a compor sua
imagem de macho, muitos homens se ressentem da falta de um canal para
extravasar seus problemas íntimos. Aqueles com quem convivi num grupo
anônimo de terapia masculina estavam ali por causa dessa carência –
só em segredo podiam dividir sua vulnerabilidade com os outros. Por
outro lado, apesar dessa dificuldade em comungar suas emoções, os
homens têm um certo espírito de companheirismo que o feminismo tentou
mas nunca conseguiu despertar nas mulheres.

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