Ser agente penitenciário não
é fácil em nenhum lugar. Mas
com o PCC tudo fica ainda pior
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Fábio Portela e Victor Martino
Antonio Milena![]() |
| Rotina do medo: desarmados e em número insuficiente, agentes penitenciários de São Paulo são atacados pelo PCC |
A guerra travada entre o governo de São Paulo e a facção criminosa batizada de Primeiro Comando da Capital (PCC) já fez muitas vítimas. Desde maio, 183 pessoas foram assassinadas no confronto, entre policiais, bandidos e civis. Ninguém está tão exposto ao perigo, no entanto, quanto os agentes penitenciários. Em todo o estado, 23.000 homens e mulheres têm essa ocupação. É deles a responsabilidade de administrar e vigiar as cadeias paulistas. Não é uma tarefa simples. Enquanto a maioria da população só vê criminosos do PCC eventualmente, por meio da imprensa, os agentes encontram-se com esses bandidos diariamente, logo que chegam ao serviço. Apesar do risco a que se expõem, não podem usar armas para trabalhar. Carregam apenas um tonfa, espécie de cassetete que recebem quando são admitidos. Os presos tentam subjugá-los o tempo inteiro. Para isso, usam todas as formas de pressão, de constrangimentos morais e ameaças físicas a tentativas de suborno. Basicamente, querem ajuda para levar armas, drogas e celulares para dentro das cadeias. Neste ano, inauguraram uma nova forma de coação: a cúpula do PCC mandou matar catorze agentes penitenciários. As vítimas foram escolhidas ao acaso e atacadas perto de suas casas. O objetivo foi acuar os sobreviventes e aumentar, ainda mais, o domínio dos detentos sobre o sistema prisional.
O embate entre os agentes e os presos é desigual sob qualquer ângulo que se analise. Um dos maiores problemas é a diferença numérica entre eles. O estado de São Paulo tem, sob sua tutela, 126.000 detentos – um verdadeiro exército de criminosos. Os 23.000 agentes penitenciários não formam mais do que um batalhão. Em média, cada um cuida de 5,5 presos. É um dos índices mais altos do mundo (veja quadro ao lado). Os problemas dessa relação assimétrica se revelam a todo momento. Quem trabalha no turno do dia tem como primeira missão abrir as celas para o banho de sol dos detentos. Isso ocorre às 7h30. Em alguns presídios, como o Centro de Detenção Provisória do Belém, na capital paulista, um único agente é responsável por destrancar todas as celas de cada ala. Com um molho de chaves, ele abre oito portas de ferro em seqüência. De cada cela, saem vinte detentos. Ou seja: em poucos minutos, o agente se vê, sozinho e desarmado, cercado por 160 criminosos – assaltantes, homicidas e traficantes. "Que tipo de segurança alguém pode ter contra um grupo de 100, 200 presos, portando apenas um molho de chaves e uma caneta no bolso?", pergunta Cícero Sarnei, presidente do Sindicato dos Agentes de Segurança Penitenciária do Estado de São Paulo.
Os detentos se aproveitam da situação. Só neste ano, fizeram 139 rebeliões. Em 129 delas, tomaram agentes como reféns. Desde janeiro, 922 funcionários permaneceram em poder de bandidos amotinados. Nessas ocasiões, os agentes são trancados em celas enquanto os detentos negociam regalias e benefícios com a direção das unidades. Muitos dos que usualmente se recusam a prestar "favores" aos presos são, nessas ocasiões, vendados e submetidos a tortura. O que deveria ser um dia rotineiro de trabalho se transforma em uma sessão de socos, chutes e queimaduras de cigarro. Neste ano, os casos se repetiram à exaustão. O episódio mais crítico ocorreu em 10 de maio, quando 29 agentes foram reféns durante 47 horas em um motim na penitenciária de Valparaíso. A rebelião foi coordenada pelo PCC e deu a senha para o "maio sangrento", série de ataques iniciada pelos criminosos durante o fim de semana do Dia das Mães. Depois disso, 71 outras cadeias se rebelaram. Durante esses motins, 355 funcionários ficaram nas mãos dos presos.
Alex Silva/AE![]() |
| Rebelião em maio: o PCC pede paz, mas ameaça a vida dos agentes penitenciários |
Situações de tensão como essas tornaram-se tão comuns nos presídios paulistas que atualmente há 1 091 agentes afastados do serviço por ordem médica ou psiquiátrica. "O agente que passa pela experiência de ficar em poder dos presos precisa ser submetido a acompanhamento psiquiátrico, para tratar os transtornos do stress pós-traumático", diz Márcio Bernik, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Na prática, no entanto, o único tratamento que eles recebem é uma licença médica de trinta dias para se recuperar do choque. Depois, voltam a trabalhar na mesma unidade e, muitas vezes, vigiam os mesmos presos que os torturaram.
Se há milhares de funcionários que são oprimidos pelo PCC, também existem muitos que se submetem aos presos e, por dinheiro, cumprem todo tipo de ordem. Os "serviços" contratados pelos bandidos incluem fazer vista grossa na hora de revistar visitantes e entregar drogas e armas de fogo aos detentos. Na gíria dos agentes, os que se corrompem são chamados de "correrias". "A quase totalidade do material que entra ilegalmente nos presídios passa com o consentimento de algum agente. Quem diz o contrário está sendo hipócrita", afirma João Rinaldo Machado, presidente do Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional. Atualmente, 830 agentes respondem a processos disciplinares por infrações graves em São Paulo. A maioria se corrompeu: entrou com celulares, drogas e armas nas cadeias ou colaborou diretamente para a fuga de presos. Enquanto as sindicâncias correm, todos continuam na ativa. Dificilmente alguém é demitido por essa razão. O mais comum é que o funcionário corrupto seja transferido e o assunto, esquecido.
Apesar do cotidiano de extrema violência a que são submetidos, nenhum dos dezenove agentes penitenciários ouvidos por VEJA pretende trocar de emprego. Eles argumentam que o salário médio da categoria, de 1.970 reais por mês, é muito bom para quem tem apenas o ensino médio, caso de quase todos. Acham que não conseguiriam o mesmo rendimento em outra profissão. Eles fazem apenas duas reivindicações ao governo. Em primeiro lugar, querem a contratação de mais agentes, para tornar o trabalho nas cadeias menos perigoso. Pedem também o direito de andar armados. Uma portaria da Polícia Federal, publicada neste mês, abriu essa possibilidade. De armas na mão, acreditam que estarão mais preparados para se defender. Para eles, a guerra não tem fim.
AS VÍTIMAS DO PCC
Fotos acervo pessoal![]() |
NILTON CELESTINO
41 anos
Casado, pai de cinco filhos
Trabalhava como agente havia 15 anos
Foi morto pelo PCC no dia 28 de junho
Nunca gostou de lidar com presos. Desde que começou a trabalhar como agente, fez de tudo para se manter afastado das celas e dos pavilhões. Em 2001, conseguiu ser transferido para o centro de informática da Secretaria de Administração Penitenciária. Lá, ajudou a desenvolver o sistema de banco de dados que hoje é usado em todos os presídios paulistas. Em 2004, ele se tornou responsável pela rede de computadores do CDP de Itapecerica da Serra, município onde vivia. Evangélico, era muito ligado à mulher e aos filhos. Os agentes que trabalharam com ele nos últimos anos o consideravam uma pessoa tranqüila e feliz. Não bebia, não fumava e não falava gírias. Jamais se queixou de pressão ou de ameaças do PCC. Era um homem pacífico. Declarava a todos ser contrário ao uso de armas de fogo. Acreditava que qualquer preso pode ser recuperado, mesmo os que cometeram os piores crimes. Foi metralhado na porta de sua casa às 6h20 do último dia 28, quando ia para o trabalho. O corpo ficou estendido na rua. Sua mulher fugiu da cidade com as crianças naquele mesmo dia.
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EDUARDO RODRIGUES
41 anos
Casado, pai de dois filhos
Trabalhava como agente havia 4 anos
Foi morto pelo PCC no dia 1º de julho
Começou a trabalhar como agente aos 37 anos. Desde então, nunca mais se sentiu seguro. Receava ser atacado por ex-detentos. Mesmo sem ter porte de arma, passou a andar com um revólver calibre 38. No ano passado, foi flagrado com a arma em uma blitz da Polícia Militar. O episódio lhe rendeu dois dias de detenção em um distrito policial e 45 dias de "suspensão branca" (disfarçada de licença médica) na Secretaria de Administração Penitenciária. Abandonou o revólver. Em fevereiro, foi transferido para o arquivo geral do sistema penitenciário paulista. Digitalizava antigos documentos retirados do Carandiru. Era um serviço burocrático, sem riscos. Segundo seu filho, Bruno, o pai estava satisfeito. Ainda assim, sempre dizia que gostaria de mudar de emprego. Recentemente, a família comprou um sítio próximo a São Paulo para passar os fins de semana. Rodrigues pensava em se mudar para lá. Foi morto no dia 1º de julho, um sábado, às 10 da manhã. Levou quatro tiros à queima-roupa quando buscava um televisor que havia levado para o conserto.
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OTACÍLIO DO COUTO
40 anos
Casado
Trabalhava como agente havia 16 anos
Foi morto pelo PCC no dia 2 de julho
Estava totalmente adaptado à vida dentro dos presídios. Na unidade em que trabalhava, o CDP do Belém, na capital paulista, lidava diretamente com os presos, sempre no turno da noite. Durante as madrugadas, rondava os corredores do local para prevenir possíveis tentativas de fuga. Nunca se casou oficialmente, mas viveu catorze anos com Rosana Carvalho, uma agente penitenciária que ele conheceu quando os dois trabalhavam no Carandiru. Eles haviam se separado, mas planejavam voltar a morar juntos. Para isso, alugaram uma casa no município de Guarulhos, que estava sendo mobiliada. Durante a onda de atentados lançada pelo PCC em maio, Couto teve muito medo de ser alvo dos criminosos. Naquela ocasião, ele passou quatro dias inteiros sem sair da cadeia onde trabalhava. Preferiu dormir no local a se expor aos ataques nas ruas. Defendia o porte de arma para os agentes. Achava que isso aumentaria sua segurança. Foi morto no dia 2 de julho, um domingo. Levou nove tiros enquanto usava um orelhão no quarteirão de sua casa. Rosana acredita que ele tentava telefonar para ela.
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PAULO ARAÚJO
54 anos
Casado, pai de três filhos
Trabalhava como agente havia 32 anos
Foi morto pelo PCC no dia 7 de julho
Ajudou a fundar os dois maiores sindicatos de agentes penitenciários do estado de São Paulo e era diretor regional de um deles. Defendia o direito desses profissionais ao porte de arma. Depois que teve início a onda de ataques a agentes prisionais, no fim de junho, Araújo deu diversas declarações à imprensa condenando os crimes. Disse, mais de uma vez, que as ações do PCC eram "burras e covardes". Chegou a ser entrevistado pelo The New York Times. Ao jornal americano, afirmou que nos presídios paulistas todos eram "reféns dos criminosos". Em setembro próximo, completaria 25 anos de casado. Planejava uma grande festa para comemorar a data. Foi assassinado no dia 7 de julho, no início da manhã, na Zona Norte de São Paulo. Tirava o carro da garagem para ir trabalhar, quando foi surpreendido por um homem encapuzado, que o esperava na calçada. Levou um tiro no braço e outro no coração. Morreu na hora. Sua mulher presenciou o crime da janela de casa sem poder reagir.





