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Roberto DaMatta, entrevista ao Correio Braziliense (08/07/06)
Lágrimas amargas
O antropólogo Roberto DaMatta analisa as reações extremadas do
torcedor e da mídia depois da derrota da Seleção para a França e sai
em defesa dos jogadores
Carlos Marcelo
Da equipe do Correio
Professor de antropologia social da PUC-RJ, Roberto DaMatta assistiu
Brasil x França ao lado dos netos. Revela que, para eles, integrantes
de uma geração que já saiu às ruas para comemorar duas copas do
mundo, a vitória no jogo do último sábado era tida como certa. "Para
mim, não: hoje que sou um jovem de 70 anos, estou mais consciente dos
caprichos dos deuses que comandam o futebol", conta ao Correio.
"Ademais, quando vi o presidente Lula manipulando a seleção naquela
ridícula entrevista em que ofendia Ronaldo e criava um clima péssimo
entre o selecionado e o bom senso, com todo o canibalismo armado pela
mídia em torno do selecionado, comecei e enxergar um peso
insuportável do nosso sucesso futebolístico. E temi que ele fosse nos
esmagar. Foi o que, tristemente, ocorreu", comenta um dos mais
renomados antropólogos brasileiros. "O sucesso tem o seu anestésico,
ele situa as pessoas no cume e, uma vez lá, você só pode mesmo
descer", constata.
O mais recente livro de Roberto DaMatta, A bola corre mais que
os homens (Editora Rocco), como ele mesmo define, usa o futebol como
foco para discutir a sociedade, a competição, a incerteza e o estar
no mundo moderno em geral. Em entrevista por email, DaMatta recusa a
tese que faltou amor à camisa aos jogadores radicados na Europa
(viver no exterior não faz ninguém ficar menos brasileiro, muito pelo
contrário), critica o patriotismo negativo do torcedor que ficou
perplexo com uma revanche inexistente e afirma que, apesar dos
pesares, o que mundializa o esporte ainda é a dimensão atingida pelos
jogadores brasileiros.
Por que o Brasil (o torcedor) não se enxergou no Brasil (os
jogadores) que entrou em campo durante toda a Copa da Alemanha e,
especialmente, no último jogo?
Porque o Brasil jogou mal e perdeu. O “torcedor”, que entrou de
cabeça, corpo e alma na dimensão arrogante do nacionalismo brasileiro
— um patriotismo negativo que nos coloca acima de todos os outros e
não vê virtude em ninguém; ou seja, um sentimento incapaz de
relativizar-se, de se colocar em relação — ficou perplexo com uma
“revanche” que não a conteceu. Ora, qual é o enredo das “vinganças”?
A derrota, a aniquilação total do outro, do inimigo – e isso não
aconteceu naquele jogo entre Brasil e França. Em suma o Brasil reagiu
mal à desagradável surpresa de jogar contra uma equipe que estava bem
e foi infantilmente envolvida por ela, como aliás, ocorre em quase
todos os jogos de futebol. O esporte, diferentemente da política,
impede a identificação com os apáticos, os broxas, os perdedores, os
incompetentes e, sobretudo, os desonestos.
O senhor acredita que o processo de globalização dos jogadores,
ídolos de clubes mundiais e máquinas de fazer dinheiro, afetou a
relação desse grupo com o fato de integrarem a Seleção Brasileira?
Eles sentem menos identidade com seu país de origem e mais como
cidadãos do primeiro mundo? A apatia demonstrada durante o jogo, e
tão comentada nos últimos dias, pode ser decorrente desse processo?
Não creio que isso afete a ponto de fazê-los perder o foco e a
motivação. Veja bem como sua indagação é maliciosa e, no limite,
irracional: ninguém melhor do que esses jogadores sabe que foi o
futebol do Brasil que os fez milionários cosmopolitas. Eles, muito
mais que nós, sabem o que futebol pode proporcionar. Ademais, e disso
eu posso falar com sinceridade e candura, viver no exterior não faz
ninguém ficar menos brasileiro, pelo contrário: faz com que o
sentimento de pertencer ao Brasil seja eventual e normalmente
exaltado. Só o nosso nacionalismo às avessas pode imaginar que u m
sujeito que sai do Brasil justamente porque é um representante
legítimo do futebol do Brasil pode tornar-se um Calabar — um traidor
— e esquecer a pátria. E isso no contexto de um jogo decisivo para o
seu time, para o seu destino profissional. Esses jogadores,
justamente por serem profissionais, são os mais conscientes de suas
perdas. A meu ver eles seriam os últimos a pretender a derrota. Mas
entre a vontade e a realidade, há a bola que, como eu digo no meu
livrinho, corre mais que homens…
Em um dos ensaios incluídos no último livro, o senhor afirma que o
Brasil subverteu a lógica do esporte inventado na Europa e passou a
dominá-lo. Na Copa da Alemanha, contudo, quatro seleções européias
chegaram às semifinais e assim o continente, ao menos por quatro
anos, retoma a supremacia sobre o jogo que inventou e desenvolveu. O
que isso representa para a auto-estima do europeu e do sul-americano?
Sua pergunta responde: o estilo brasileiro de jogar está hoje
inscrito no futebol mundial — é exatamente isso que faz com que esses
times sejam bons… É essa semelhança brasileira o marco globalizador
do futebol. Ou seja: o que mundializa o futebol é essa dimensão
brasileira. O dedinho indicador balançando quando o jogador marca, o
pulo e o murro no ar quando explode o gol, a finta de corpo (e não de
perna), o toque de bola que pretende desprezar o adversário,
colocando-o no seu lugar e revelando com quem ele está jogando (ou
falando), o chapéu, a bicicleta, a pedalada… Enfim, tudo o que hoje é
praticado por todos mas que, de fato, foi inventado pelo Brasil.
Creio que por trás da compreensível frustração da derrota, temos que
ainda assim ler o triunfo do estilo brasileiro de praticar o esporte.
Quanto mais não seja porque o Felipão, apóstolo do nosso estilo,
propagador de nossa mensagem futebolística, mesmo não chegando à
final, conseguiu participar desse momento derradeiro do campeonato.
Em entrevista ao Estado de S.Paulo, publicada no último domingo, o
filósofo argentino Nestor Canclini afirma que o futebol ficou
transnacional. E completa: Ronaldinho Gaúcho, hoje, é um jogador
brasileiro ou um craque do Barcelona? Há tensão nessa pergunta porque
certamente identidades estão sendo reconfiguradas. Concorda com a
afirmação? Estamos efetivamente vivendo um período de reconfiguração
de identidades?
Eu não tenho dúvida que vivemos um momento de reconfiguração de
identidades. Mas, pergunto, quando é que não foi assim? No final do
Império Romano, quando o Imperador se convertia à religião dos
oprimidos, dos miseráveis e dos marginais, dos que acreditam na
compaixão e na caridade, no amor ao próximo como valor supremo e,
pior que isso, num outro mundo e num Deus único? No final da Segunda
Guerra Mundial, quando a Alemanha saía do sonho nazista do Reich de
mil anos? Da Renascença, quando se redescobriam valores greco-romanos
e, com isso, toda a estética medieval era reescrita? Quando os
europeus realizaram a partilha da África? Ou quando a família real
portuguesa fugiu para o Brasil? Ser humano, já dizia Gilberto Freyre,
para não ser ouvido por nenhum brasileiro, é reconfigurar-se. Só os
animais e os extremistas não têm nenhuma dúvida sobre o que são e,
portanto, não são “trans” alguma coisa.
Para o Nestór Canclini, cuja obra eu muito admiro, tudo é trans,
multi ou pan alguma coisa. Eu não o culpo. Ele, como muitos dos meus
colegas, enxergam demais, quando — penso eu — às vezes é preciso
enxergar de menos. Não sei, por exemplo, como um Ronaldinho Gaúcho
pode ter essa personalidade excêntrica ou ser um sujeito descentrado
quando ele vive com a mãe gaúcha que todo o dia lhe prepara um
filezinho com ovo, arroz e feijão no melhor estilo nacional, ele fala
um espanhol que dá para o gasto… ou seja: o que conhece da cultura
ibérica não deve ir além das boate s, dos bons restaurantes e das
lojas de revenda de carros e roupa de grife e joga sabendo e tendo
certeza que tudo o que é e faz se liga ao Brasil! Ademais, sempre que
pode (e esses caras podem muito), ele se junta com seus colegas
brasileiros para fazer uma roda de samba. Se há angústia no
Ronaldinho é aquela de não poder voltar logo para o seu país; de ser
obrigado a, de vez em quando, virar espanhol e de viver uma imensa e
indizível saudade do Brasil.
O ‘torcedor’, que entrou de cabeça, corpo e alma na dimensão
arrogante do nacionalismo brasileiro — um patriotismo negativo que
nos coloca acima de todos os outros e não vê virtude em ninguém —
ficou perplexo com uma ‘revanche’ que não aconteceu.
Bola dividida
O futebol ficou transnacional. Ronaldinho Gaúcho, hoje, é um
jogador brasileiro ou um craque do Barcelona? Há tensão nessa
pergunta porque certamente identidades estão sendo reconfiguradas.
Nestór Canclini, filósofo argentino
Para o Nestór Canclini, tudo é trans, multi ou pan alguma coisa.
Eu não o culpo. Ele, como muitos dos meus colegas, enxergam demais,
quando — penso eu — às vezes é preciso enxergar de menos.
Roberto DaMa tta, antropólogo brasileiro