Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 22, 2006

Insegurança estrutural Marco Aurélio Nogueira

ESTADO


Viver nas metrópoles do capitalismo global é fazer um pacto com a turbulência, o inesperado e a insegurança. É assim particularmente nas cidades brasileiras. A qualquer instante explode uma crise. O perigo parece à espreita em cada esquina. O medo é experiência cotidiana e o pânico se generaliza com facilidade.

Tudo expressa uma vida social em franca recomposição, bem como um mundo que está ao alcance da mão, mas não pode ser controlado. Precisamos assimilar intelectual e emocionalmente esse novo quadro. A velocidade, a tecnologia, as facilidades de conexão e comunicação, a exacerbação do mercado, a porosidade das fronteiras globalizadas produzem um cenário de fragmentação social, de movimentação incessante, de mudança ininterrupta, de incerteza e confusão. Não é por acaso, ou por falhas de gestão, que as instituições funcionam mal e quase não geram efeitos ordenadores sobre os indivíduos e sobre a dinâmica social. Não é por opção, nem por incompetência, que os governos governam pouco e parecem impotentes.

Seja em decorrência da fragmentação e da mobilidade social, seja pela democratização e pela maior circulação de informações, as pessoas não se podem comportar como abelhas organizadas, dóceis e cooperativas, à espera de "ordens". Não podem e não querem fazer isso. Além do mais, as "ordens" e as sugestões que recebem não são confiáveis, ou porque são emitidas por órgãos e por "superiores" desprovidos de suficiente legitimidade, ou porque se mostram defasadas em relação à realidade. A época é de horizontalização, não de verticalização, é de participação e deliberação, não de obediência passiva.

A sociedade está-se individualizando: as pessoas descolam-se umas das outras e se soltam de seus grupos tradicionais de referência. Freqüentam inúmeras "tribos" que não se definem nem pela duração no tempo, nem pela disposição de fornecer explícitas orientações de sentido. Grupos e indivíduos não estão propriamente desagregados, mas sim agregados de maneira mais dinâmica e imprevisível. Agem e interagem de modo bem mais ativo, pensam cada vez mais com a própria cabeça, questionam limites, autoridades e tradições. É um progresso civilizatório que, como todo avanço, não se faz sem dor.

Temos mais autonomia, mas também mais anomia, isto é, mais ausência de normas, regras e leis. No Brasil (mas não só aqui) a pobreza se reproduz, o desemprego se alastra e a exclusão não parece ceder. Tecnologia de ponta, miséria cívica e precariedade existencial se entrelaçam diabolicamente. Tudo ajuda a dilacerar a convivência social. A confluência desses processos produz tensões e desequilíbrios duros de suportar.

Daí a sensação de que as instituições se encontram em estado de "sofrimento", sem muita capacidade de direcionar a vida ou de repercutir positivamente nela. Evoluem meio artificialmente, como sistemas vazios de densidade comunicativa, incapazes de produzir consensos interpretativos, solidariedade e adesão coordenada. Os centros estão formalmente presentes, as organizações estão administrativamente assentadas, têm seus chefes e suas hierarquias, mas não se mostram em condições de fazer com que suas decisões atinjam as pessoas e resolvam os problemas que as angustiam. O "sofrimento organizacional" não é sinônimo de ineficácia ou ineficiência. É apenas o reflexo de um quadro de turbulência e inquietação, no qual as decisões são custosas e produzem poucos efeitos.

Todos querem participar, falar e deliberar, e em boa medida podem fazer isso sem muitas restrições. As reivindicações diversificam-se e se avolumam com grande rapidez. Nenhuma decisão, porém, satisfaz, mesmo quando tomada de modo ampliado. É um paradoxo: desejam-se decisões rápidas e ao mesmo tempo se deseja deliberar a respeito de tudo. O "sofrimento" reflete esse desencontro de expectativas.

A questão é descobrir um meio de fazer com que as novas disposições sociais produzam vida coletiva de melhor qualidade e sirvam de base para a instituição de um novo Estado. Hoje, a individualização está "institucionalizada": impôs-se a todos. Trata-se de um processo objetivo, que afirma o indivíduo diante dos grupos, que implica escolhas individuais incessantes, que gera muitas dúvidas e poucas convicções. Porém não se confunde com individualismo ou egocentrismo mesquinho. Os indivíduos individualizados são capazes de cooperação voluntária e de entrega coletiva. Podem-se mobilizar e agir politicamente, mesmo que por fora de partidos e da arena política estrita.

É inócuo e incorreto lamentar o "fim do social", a "crise de valores", o fracasso do sistema político e dos governos, ou ficar clamando por mais autoridade e mais polícia nas ruas. A "subversão" a que estamos assistindo não resulta de nenhuma ação política, mas retrata uma acomodação estrutural, como se a sociedade estivesse aprendendo a conviver com seu novo estágio de desenvolvimento.

Por que não tentar explorar, então, o que há de potência e promessa nesse novo estágio? Em vez de fazermos apelos "fundamentalistas" ao coletivo, à pátria, aos princípios morais - que não podem ser feitos democraticamente -, deveríamos buscar um meio de mobilizar as pessoas em torno das questões que afetam diretamente sua vida (a destruição ambiental, o desemprego estrutural, os novos relacionamentos, a bioética e a experimentação genética, a saúde e a educação). Se houver convicção social de que o futuro é possível, maiores serão as chances de integração e de vida comum.

No curto prazo, talvez não dê mesmo para esperar respostas muito confiáveis das instituições - dos partidos, dos governos, dos órgãos públicos, das igrejas, dos sistemas. Mas podemos aproveitar as maiores margens de liberdade e politizar as novas formas sociais, com seus personagens, seus conflitos e suas contradições.

Marco Aurélio Nogueira, professor de Teoria Política da Unesp, é autor, entre outros, dos livros Em Defesa da Política (Senac, 2001) e Um Estado para a Sociedade Civil (Cortez, 2004)

E-mail: m.a.nogueira@globo.com

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