Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, julho 13, 2006

Crime organizado, um inimigo desconhecido - TULIO KAHN

Folha de S. Paulo
13/7/2006

Sem indicadores adequados, as análises sobre o crime organizado são
subjetivas e pouco confiáveis, uma vez que afetadas por interesses

A ONU realizou em fevereiro de 2006, em Viena, um encontro para
estudar formas de aprimorar a coleta de dados criminais para atender
as novas convenções sobre corrupção e crime organizado transnacional
e sugerir indicadores que fossem simples e universalmente
compreendidos para estimar a extensão do crime organizado no mundo a
fim de monitorá-lo e propor medidas para combatê-lo.
A iniciativa derivou do art. 28 da Convenção sobre Crime Organizado
Transnacional, que recomendou o desenvolvimento e compartilhamento de
experiências com relação às atividades criminais organizadas.
O problema é que não existem definições comuns entre os países para
estabelecer de modo inequívoco o que seja "crime organizado". Quais
delitos podemos arrolar como "crime organizado"? Quais os indicadores
para medir se estão crescendo ou diminuindo? Fazem sentido
comparações para estabelecer onde é mais ou menos intenso? O que o
distingue de outras formas de crime que também têm características
estruturadas, como os cometidos por gangues de rua ou por corporações?
Concluiu-se ser inapropriado fazer uma lista exaustiva de delitos
praticados pelo crime organizado, que atua tanto contrabandeando
ébano quanto aliciando imigrantes, passando pela lavagem de dinheiro,
obstrução da Justiça, falsificação ou tráfico de drogas, armas,
veículos e seres humanos.
Qualquer relação seria incompleta, pois estamos lidando com fenômenos
criminais múltiplos e diferentes. Na lista elaborada pelos países
europeus, por exemplo, não há nenhuma menção a transporte ilegal de
passageiros, extorsão por telefone ou cobrança de taxas de presos,
delitos praticados por facções criminosas no Brasil. Para complicar,
em cada um dos delitos listados, algumas etapas do processo podem ser
organizadas, e outras, não.
A mera quantidade de organizações criminosas atuando no país tampouco
é uma medida adequada, pois desconsidera o nível de seriedade dos
delitos praticados e a ameaça que eles representam.
A própria apreciação da "seriedade" é paradoxal, já que, quanto mais
organizada uma atividade criminal, menos violenta ela é. "Seriedade",
portanto, pode ser entendida como risco oferecido para as
instituições, e não quantidade de mortes provocadas pela ação criminal.
Alguns especialistas defendem que se trata de um "modo de agir", que
envolve traços como hierarquia, divisão do trabalho, contabilidade
racional, atividade permanente objetivando lucro ilícito etc. Essas
características, porém, nem sempre são encontradas nos casos
concretos e dificultam a tipificação. Por essas razões, dos 15
Estados-membros da União Européia, apenas oito mantinham dados
específicos sobre "crime organizado", seguindo definições distintas.
A conclusão do evento, diante da indefinição do conceito, foi a de
que indicadores devem ser desenvolvidos por meio da identificação de
traços relevantes (markers) e medidas diretas e indiretas do fenômeno
do crime organizado (recomendação 17 - E/CN 15/2006/4).
Sem indicadores adequados, nossas análises sobre a real extensão e
ameaça representada pelo crime organizado são subjetivas e pouco
confiáveis, uma vez que afetadas por considerações políticas e
interesses. Alguns desejam superestimar o crime organizado para
aumentar seu orçamento, outros, subestimá-lo para proclamar vitórias.
O cenário eleitoral e econômico também é oportuno para avaliações
superdimensionadas, que servem para desacreditar lideranças políticas
ou aumentar a audiência, ou então são minoradas para evitar prejuízos
aos negócios.
Até o momento, nem a comunidade internacional nem o Brasil
conseguiram monitorar a extensão do problema, que aparentemente
eclode de surpresa, como um raio num dia de céu azul.
Às propostas relevantes que se seguiram aos ataques, juntaram-se
outras, equivocadas e inexeqüíveis, fruto do desconhecimento e de
teorias conspiratórias que sempre aparecem na ausência de informações
confiáveis. Quero crer que seria valioso se conseguíssemos definir
contra o que e contra quem exatamente estamos travando essa luta.
Pois, enquanto os homicídios, latrocínios, estupros e roubos
diminuíam consideravelmente no Estado, algo indefinível e mal
compreendido ocorria nos subterrâneos do mundo do crime. Algo
assustador, como tudo que não conseguimos ver, analisar e controlar.

TULIO KAHN, 40, mestre e doutor em ciência política pela USP, é
coordenador de Análise e Planejamento da Secretaria de Segurança
Pública de São Paulo. Foi vice-chairperson do encontro da ONU em
Viena, de 8 a 10 de fevereiro de 2006.

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