Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, julho 04, 2006

Arnaldo Jabor - As chuteiras sem pátria

O Globo
4/7/2006

Quando chega um fax com barulhinho de cornetas celestiais, eu já sei:
é carta do Nelson Rodrigues. Não deu outra. Nelson me pedia para
publicar um texto sobre a Copa, já que está sem contato nas redações:
“Eu sou do tempo do Pompeu de Souza, do Prudente de Morais Neto...
Não conheço esses meninos da redação...” . Muito bem, aqui vai seu
comentário sobre o sábado da desgraça:

“Amigos, a derrota é um grande momento de verdade. Só diante da
vergonha é que entendemos nossa miséria. Num primeiro momento,
queremos encontrar uma explicação para o fracasso, mas fracasso não
se improvisa — é uma obra calculada, caprichada durante meses, anos
até. Não adianta berrar no botequim que o Parreira é uma besta ou que
o Ronaldo é um gordo perna-de-pau. Não. Nosso fracasso começou antes,
porque esta seleção não foi a pátria de chuteiras, foram as chuteiras
sem pátria.

Para nossos jogadores ricos e famosos, o Brasil é a vaga lembrança da
infância pobre, humilhada. O país virou um passado para os plásticos
negões falando alemão, francês, inglês, todos de brinco e com louras
vertiginosas. Não são maus meninos, ingratos, não, mas neles está
ausente a fome nacional, a ânsia dos vira-latas querendo a salvação.
O povo todo estava de chuteiras, para esquecer os mensalões e os
crimes, mas nossos craques não perderam quase nada com a derrota,
tiveram apenas um mau momento entre milhões de dólares e chuteiras
douradas pela Nike.

Isso me faz lembrar o grande Neném Prancha do Botafogo: ‘Temos de ir
na bola como num prato de comida!...’ Que frase profunda, esquecida
hoje... Nosso time come bem e nem os jogadores, nem os técnicos, nem
os roupeiros e massagistas viram o óbvio, ali, uivando, ululando nos
vestiários: o time estava sem conjunto, os jogadores estavam presos a
um esquema tático que contrariava suas vocações. Só o povo berrava:
‘Ronaldo está gordo, Ronaldinho tem de atuar mais livre, os jovens
têm de jogar mais!’. E quanto mais o óbvio se repetia, mais o
Parreira se obstinava em sua lívida teimosia... Por quê? Porque o
técnico é sempre contra a opinião geral. Em vez de orientar as
vocações dos rapazes, ensinando-lhes a liberdade, a coragem e o
improviso, o Parreira achou que todos têm de caber em sua estratégia.
O pior cego é o surdo. E jogador brasileiro não gosta de lei nem de
planejamentos, quer inventar sozinho. O técnico devia ser um reles
treinador, quase um roupeiro, humilde diante dos craques. Mas o
Parreira parecia um ‘Mussolini’ de capacete e penacho. Teve vários
sinais de tirania: só dava a escalação no vestiário, com os jogadores
desamparados, na insônia da dúvida da convocação, não teve coragem de
barrar as estrelas, como se isso fosse uma afronta ao passado e às
multinacionais. Ronaldo fez gols, tudo bem, mas foi uma âncora pesada
desde o início, em torno do qual os problemas giraram. Parreira ficou
com medo dos jovens, e eu via em seus rostos o desespero do banco.
Robinho arfava de rancor e só entrava quando era tarde demais.
Robinho foi o único que chorou no final, ainda menino e puro. Quem
teve a mãe seqüestrada sabe o que é tragédia. E, para escândalo do
país, Robinho ficou de castigo. Ao final de tudo, Parreira disse a
frase suicida: ‘Não estávamos preparados para perder!...’ Isso é a
morte súbita, isso é a guilhotina. Sem medo, ninguém ganha. Só o
pavor ancestral cria uma tropa de javalis profissionais para a
revanche, só o pânico nos faz rezar e vencer, só Deus explica as
vitórias esmagadoras, pois nenhum time vence sem a medalhinha no
pescoço e sem ave-marias. Mas Parreira ignorou a divindade e
acreditou em si mesmo, com a torva vaidade de uma prima-dona gagá,
com pelancas e varizes.

Isso é o óbvio, mas foi ignorado. E quando o obvio é desprezado,
ficamos expostos ao sobrenatural, ao mistério do destino. Por
exemplo, por que começamos o jogo como um corpo de bailarinos
eufóricos e, 15 minutos depois, ficamos paralíticos como sapos diante
de cascavéis, com o Zidane dando chapéus até no Ronaldo? Será que
diante da Marselha sofremos um pavor reverencial? Em 98, Ronaldo caiu
em convulsões de cachorro atropelado no vestiário. E agora? Creio que
no sábado não estávamos com medo da França, não, o que tivemos foi
medo de nós mesmos, voltou-nos o complexo de vira-latas, inibidos
como vassalos diante do Luís XIV, de sapato alto e peruca empoada.
Foi assim em 98 e agora. A França é muito chique para filhos do Capão
Redondo e de Bento Ribeiro.

Mas todos sabem que quem ganha e perde as partidas é a alma. E a
nossa estava dividida entre o match e a linha de passe, entre o show
e a vitória. Houve o episódio da meia do Roberto Carlos, que, um
segundo antes do gol da França, estava ajeitando a liga como uma
madame Pompadour. Pelé notou o descuido frívolo e trágico, pois
guerreiro furioso não conserta a roupa na batalha. Esse pequeno gesto
revelou bastidores de equívocos fatais, teorias e teimosias.

Outra coisa que nos matou foi a torcida. Nunca houve uma torcida tão
desesperada por uns minutos de paraíso, de brilho. Foi diferente de
1950. Lá, sonhávamos com um futuro para o país. Agora, tentávamos
limpar nosso presente. Explico: há um ano, somos uma nação de
humilhados e ofendidos, debaixo da chuva de mentiras políticas,
violência e crimes sem punição. Descobrimos que o país é dominado por
ladrões de galinha, por batedores de carteira e pelos traficantes.
Por isso, a população queria que o scratch fizesse tudo que o Lula
não fez. Mas era peso demais para os rapazes. A dez mil quilômetros,
os jogadores ouviam os gemidos ansiosos das multidões de verde e
amarelo, como uma asma patriótica. Não esperávamos uma vitória, mas
uma salvação. Só a taça aplacaria nossa impotência diante da zona
brasileira, a seleção era nossa única chance de felicidade. Queríamos
a taça para berrar ao mundo e a nós mesmos: ‘Viram? Nós brasileiros
somos maravilhosos!’

Mas não deu. É só.”

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