FOLHA ON LINE
José Dirceu perdeu seu mandato de deputado federal e está inelegível até 2015. Ele foi o segundo parlamentar a ter suas prerrogativas cassadas pela Câmara. O primeiro foi Roberto Jefferson, quem deflagrou a crise acusando a existência do chamado mensalão. Seria tentador ver nessas duas punições exemplares um sinal de que a cultura política brasileira está melhorando e certos desmandos largamente tolerados no passado já não são aceitos com tanta indulgência. Embora esse diagnóstico não seja de todo inexato --algumas práticas outrora freqüentes hoje são de fato tidas como inadmissíveis--, acho mais correto interpretar a cassação de Dirceu como uma espécie de sacrifício do bispo, num movimento que visa a manter tudo mais ou menos como está --um eufemismo para a boa e velha pizza.Ainda que não voluntariamente, o ex-ministro da Casa Civil entregou o cargo e os direitos políticos a fim de salvar o mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para justificar a versão de que Lula não sabia de nada, o PT teve de providenciar "responsáveis". Assim, Delúbio Soares tornou-se o bode expiatório operacional e José Dirceu, o político. Não que ambos estivessem ansiosos para assumir as dores do chefe, mas, apanhados numa situação de perder ou perder, decidiram agir com "elegância". Se Dirceu e Delúbio tivessem dito que agiram sob ordens superiores, teriam comprometido bastante a situação do presidente da República sem, contudo, aliviar significativamente sua própria. Atuaram então como homens de partido, tomando para si suas próprias culpas mais as alheias.
Não é preciso PhD em ciências jurídicas para constatar que as acusações que levaram à cassação do ex-número dois do governo se aplicam igualmente bem ao número um. Não surgiram contra nenhum deles provas materiais a ligá-los ao mensalão --a famosa marca do batom.
Em relação a Dirceu, há a palavra de Roberto Jefferson, mas esta deve ser relativizada, dado que o então presidente do PTB agia com o claro propósito de vingar-se do dirigente petista. O que custou o cargo de ministro e posteriormente o mandato a Dirceu foi a suposição --mais do que razoável-- de que um esquema tão grandioso de caixa dois, e quase certamente também de corrupção, no interior do PT e do Congresso Nacional não poderia ocorrer sem o seu conhecimento. Ainda que ocorresse, ele teria o dever funcional de cientificar-se desses fatos e tomar as providências cabíveis. Não o fazendo, prevaricou. Ora, Lula pode ser acusado dessas mesmíssimas coisas. As provas disponíveis talvez sejam insuficientes para condená-los num processo penal, mas são boas o bastante num tribunal político como o é o da Comissão de Ética da Câmara e seria o do Senado num juízo de impeachment.
(Acho que vale a pena perder um parágrafo para refutar a idéia de que cortes políticas são uma excrescência antidemocrática. Isso é verdade para todos os casos, exceto o de políticos. Um cidadão particular não pode evidentemente ser julgado por parâmetros que não os fixados em leis e segundo a interpretação do Poder Judiciário. Já os políticos, quando decidem abraçar essa carreira, sujeitam-se a regras um pouco diferentes. Pelo menos tacitamente, eles abrem mão de parte de sua privacidade --terão sua vida esquadrinhada por adversários e pela imprensa-- e admitem submeter-se ao juízo de seus pares --ou instituições como comitês de ética nem existiriam. Saliente-se que processos análogos ocorrem em praticamente todas as profissões. Artistas de sucesso perdem não apenas seu direito à privacidade como por vezes também à intimidade. Médicos e advogados, como os políticos, aceitam sujeitar-se ao julgamento de colegas em processos éticos. O mesmo o fazem jogadores de futebol, que acatam a disciplina imposta pela chamada justiça desportiva).
Voltando à crise, minha sensação é a de que a oposição, por avaliar que não era o caso de perseguir o afastamento de Lula, abriu as portas para que o "preço" da boa vontade para com o presidente da República fosse acertado em torno da cabeça de José Dirceu e de mais meia dúzia de parlamentares da base aliada. Favoreceu, assim, a pizza. Tinha boas razões para fazê-lo, pois uma investigação ampla do financiamento de campanhas não teria poupado nenhum partido. Não foi o PT quem inventou a corrupção e o caixa dois, embora aparentemente se tenha esmerado em sua utilização. Como tive ocasião de dizer em outras colunas como "Impeachment já" e "Já é pizza", lamento profundamente que o Brasil não tenha aproveitado essa oportunidade para cassar uns 200, 300 políticos. Isso talvez tivesse sido o início de uma mudança de verdade.
Num certo sentido, eu acho que Dirceu se saiu razoavelmente bem do episódio. A forma aguerrida pela qual defendeu seu mandato, recorrendo diversas vezes ao Supremo Tribunal Federal e arrastando o processo por alguns meses, serviu para que a cassação fosse vista mais como o resultado de um processo político e menos como um simples caso de castigo por conta de envolvimento em corrupção. Isso é bom para a biografia de Dirceu que, aparentemente, ainda conserva ambições políticas.
O ocaso do ex-todo-poderoso dirigente petista não bastará para pôr um fim à crise, embora possa ser visto como um divisor de águas. Agora que a principal "prestação" foi paga, parece razoável afirmar que o processo de desgaste do governo por conta desses episódios está mais perto do final. Existe sempre, é claro, a possibilidade de surgirem fatos novos, mas mesmo esta é declinante à medida que as CPIs vão encerrando suas atividades e a oposição vai perdendo o interesse em escarafunchar mais a fundo.
O saldo disso tudo ainda não está muito claro. Lula, apesar de ter perdido seus principais colaboradores --a crise o privou de Dirceu e de Luiz Gushiken, além de enfraquecer sobremaneira Antonio Palocci--, ainda conserva boas chances de disputar sua própria sucessão. Embora o PIB tenha dado um susto no terceiro trimestre, tudo indica que a economia estará relativamente bem em 2006. Na verdade, menos por méritos próprios do que por vicissitudes dos ciclos econômicos, o presidente poderá comparar sua gestão à de Fernando Henrique Cardoso e apresentar números que o favorecem. Isso, ao lado da farta distribuição de bolsas-família, lhe renderá um bom capital eleitoral. Não tenho uma bola de cristal, mas não sei se isso bastará para garantir-lhe vitória. Em condições normais, seria mais do que suficiente. Mas é difícil avaliar até que ponto a imagem do PT foi comprometida. A campanha do ano que vem será uma brincadeira de criança para o marqueteiro da oposição. Ele terá até dólares na cueca para usar escatologicamente.
Quanto ao Brasil, ele continuará onde sempre esteve: um país que não se leva a sério, onde o Estado é o primeiro a descumprir a lei e os políticos fazem todo tipo de acordo para preservar seus interesses, mesmo que ao sacrifício das instituições e das idéias que diziam defender.