Entrevista:O Estado inteligente

domingo, dezembro 04, 2005

Editorial de O Estado de S Paulo

Invasão de privacidade

A pretexto de impedir que a internet venha a se converter em instrumento "à disposição da bandidagem", o senador Delcídio do Amaral apresentou projeto de lei que obriga os provedores de serviços de correios eletrônicos a manter um cadastro dos titulares de suas respectivas contas. Na exposição de motivos, ele invocou dois argumentos bastante simples e até certo ponto óbvios, afirmando ser inadmissível que tecnologias surgidas para "o engrandecimento da humanidade" possam ser utilizadas criminosamente contra a sociedade e que o tipo de controle por ele sugerido ajudaria no combate ao terrorismo.

"Temos plena convicção de que em breve os criminosos farão uso do e-mail para os mais hediondos e repugnantes fins, se já não o fazem no presente momento", explica Delcídio. "É ainda mais absurdo quando imaginamos que os criminosos possam utilizar tais tecnologias de forma gratuita, mediante serviços oferecidos pelas mais conceituadas instituições e empresas do País, como as grandes redes de telecomunicação nacional, bancos e outras instituições altamente conceituadas entre nosso povo", conclui, após afirmar que sua iniciativa permitirá ao Congresso antecipar-se "à ação dos bandidos".

Acreditamos que o senador petista esteja imbuído das melhores intenções e creia, sinceramente, estar contribuindo para o bem comum. Afinal, o desenvolvimento da tecnologia digital e o advento da internet trouxeram problemas jurídicos inteiramente novos, para os quais a legislação em vigor não oferece respostas. Mas, sejam quais forem as intenções do autor do projeto, o fato é que o tipo de controle proposto, ao obrigar os provedores de serviços de correio eletrônico a manter por dez anos um detalhado cadastro com as datas e horas em que cada comunicação por e-mail foi efetuada por sua clientela, representa uma perigosa investida contra os direitos individuais assegurados pela Constituição.

É esse seu maior perigo: sob a justificativa de propiciar "informações cadastradas" que permitam "esclarecer autores de delito", o projeto permite ao poder público invadir a privacidade de todo cidadão que tenha um computador. Com o controle da comunicação eletrônica pelo Estado, as autoridades policiais teriam acesso desde a uma simples troca de mensagens entre namorados até a correspondência entre empresas. Por isso, não seria exagero dizer que o projeto institucionaliza o "Big Brother" - o controle total e absoluto da sociedade por parte do Grande Irmão onipresente, que George Orwell descreve em 1984, seu mais conhecido libelo contra o totalitarismo. Segundo Delcídio, um cadastro da data e da hora em que cada e-mail é trocado por um cidadão não diferiria do registro das ligações que as empresas telefônicas costumam fazer. "Os provedores dos serviços de e-mails poderão continuar a oferecer tais serviços de forma gratuita e com a mesma agilidade (...); apenas a pessoa interessada deverá identificar-se. Para facilitar esse processo de cadastramento, o provedor poderá compartilhar dados de outras instituições, tais como outros provedores ou empresas telefônicas." A simples menção ao compartilhamento de dados dá a medida do caráter invasivo do projeto.

Isso fica ainda mais evidente porque os prestadores de serviços de correio eletrônico terão de apresentar às autoridades policiais, "quando requisitado", um extrato das comunicações eletrônicas realizadas durante um período de tempo determinado. O senador não esclarece por quem e como se dará essa "requisição", em que condições legais poderá ser efetuada e quais os limites jurídicos que as autoridades terão de respeitar.

Além disso, o "período de tempo determinado" é "retroativo até dez anos da data da solicitação". E, sob pena de pagamento de multa "não inferior a R$ 10 mil", os provedores terão de informar o destinatário e o remetente da mensagem, a data e a hora de seu envio e recebimento e a identificação do computador ou terminal que efetuou o acesso à conta de correio eletrônico.

Se o senador Delcídio não tem, como cremos, pendores autoritários, deveria retirar o projeto. Se não fizer isso, resta esperar que o Senado o rejeite.


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