FSP
Como já disse um profundo conhecedor da vida, não existe o amor: existem o amor e as circunstâncias.
Trocada em miúdos, essa teoria desmitifica a tese do amor que surge num primeiro olhar; aliás, desmitifica praticamente tudo, sobretudo a moral, de uma maneira mais ampla.
Suponhamos que uma linda mulher de 30 anos, exercendo com sucesso uma profissão, um belo dia se apaixone e decida que quer ficar para o resto da vida com o homem por quem se apaixonou, ter filhos e fundar uma família.
Perfeito.
Pense agora nesta mesma mulher, já um pouco distante dos 30, sem dinheiro algum e para quem nada deu certo: todos os homens de quem gostou foram embora, profissionalmente ela não deslanchou -e sabe que não vai- e não tem nenhuma perspectiva à vista de um futuro mais ameno, digamos assim. Nessa hora surge um homem daqueles com quem, aos 20, ela jamais pensaria em ao menos sair para jantar. Mas ele é gentil, bondoso e tem todos os charmes que as facilidades trazem -um motorista para que ela não tenha que enfrentar a fila do ônibus, a idéia de uma vida só fazendo contas e um futuro sem dormir no mesmo quarto com a irmã. Ela vislumbra o que poderá ser o seu destino e se apaixona -ou acha que-, pelo menos por um determinado tempo. Foi o amor ou foram as circunstâncias?
Dependendo das tais circunstâncias, as pessoas são capazes de quebrar seus mais arraigados códigos éticos e praticar atos -bem, atos que passaram a vida condenando e que continuam condenando, se praticados por outro.
Você, por exemplo, algum dia desejou a mulher -ou o homem- do próximo? Até aí tudo bem -afinal ninguém pode controlar seus pensamentos. Mas o ato, você conseguiu controlar?
É claro que, se o próximo não era tão próximo assim, não há razão muito forte para remorsos ou dores de consciência; mas ninguém namora mulher de inimigo. Afinal, com o inimigo -e sua mulher-, não se vai a lugares românticos e pouco iluminados para tomar um uisquinho, jantar e dançar.
Essas coisas só se fazem com amigos, e se a amizade ainda não é íntima, acaba ficando -pelo menos com um deles.
Você já traiu alguém? Não no sentido amoroso/sexual, claro, mas no sentido da amizade, da lealdade? Claro que não. E acha que seria capaz de trair? Claro que não. Já roubou? Já matou? Já praticou algum ato vergonhoso por fraqueza, covardia, ou para agradar algum poderoso, sem ninguém por perto para testemunhar sua falta de caráter?
Pessoas decentes não fazem essas coisas, é verdade, mas fique você sabendo: depende das circunstâncias. Diante de uma leve maledicência -nada de muito grave- feita sobre um amigo, você sai em sua defesa ou, em nome do bom humor e da modernidade, leva tudo na brincadeira, ri e entra na onda? E se o comentário maldoso for feito por seu mais recente patrão, que está dando a oportunidade profissional de sua vida: você se posiciona ou fica em cima do muro, fingindo que não percebeu?
Se encontrar num táxi um envelope, sem nenhuma identificação, cheio de dinheiro, vai à delegacia mais próxima, ou o quê? Você aprendeu que é isso que se faz, e é o que deve fazer. Mas vai passar por sua cabeça que talvez o dinheiro não chegue, jamais, às mãos de seu verdadeiro dono, que a polícia pode ficar com ele. É fácil ser honesto quando se está com a vida resolvida, mas quem está no sufoco, pendurado no cheque especial, devolve ou deixa para pensar mais tarde? Você devolvia?
Não, não responda; ninguém sabe do que é capaz. A qualquer momento qualquer um pode virar ladrão, traidor, assassino, herói e até santo.
Vai depender apenas do momento -e das circunstâncias.
Entrevista:O Estado inteligente
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