Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Candidatura acintosa CLAUDIO WEBER ABRAMO



 
Folha de S. Paulo
5/12/2005

Há entre as alegadas ambições do presidente do STF e sua função um conflito de interesses cuja persistência é intolerável

 
Há algum tempo noticia-se que Nelson Jobim, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), alimentaria ambições políticas. Fala-se numa possível candidatura à Presidência ou vice-presidência da República, neste caso numa chapa PT-PMDB. Como o sr. Jobim não vem a público para desmentir tais intenções, fica-se com a impressão de que as versões procedem e que, portanto, ele estaria se articulando para materializar o intuito. Sendo esse o caso, não há outra forma de se referir a tal candidatura senão como um acinte.
Constitui agressão ao princípio de separação de Poderes a circunstância de o presidente da mais alta corte de Justiça do país, com intervenção direta nos conflitos políticos e econômicos mais relevantes, pleitear um cargo eletivo.
Não importa que, em decorrência de uma interpretação gramatical da Constituição, o sr. Jobim teria o "direito" de concorrer. O dever de manutenção de uma moralidade mínima lhe retira esse pretenso direito. Mais, dado o poder de intervenção que o presidente da Suprema Corte tem sobre todos os assuntos que passam por ali, tal intenção eleitoral colocaria sob suspeita todas as decisões do STF, e não apenas aquelas que dizem respeito a temas de natureza política.
Há entre as alegadas ambições do presidente do STF e sua função no tribunal um conflito de interesses cuja persistência é intolerável. Se o sr. Jobim de fato nutre a ambição noticiada, todos os atos do colegiado do Supremo são lançados no mesmo buraco negro de suspeição.
Ao pretender transitar entre dois Poderes, o presidente do STF estende seu conflito de interesses ao conjunto dos demais magistrados.
Em particular, dá asas à desconfiança de que as interferências do Supremo nos assuntos do Congresso Nacional, que se tornaram freqüentes durante o processo movido no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados contra o sr. José Dirceu, se explicariam como investimento em favor da ambição eleitoral de seu presidente.
Usando o caso do agora ex-deputado apenas como exemplo, para muitos ficou óbvio que a intromissão do STF não atendeu ao anseio de servir à justiça, mas às finalidades procrastinatórias de Dirceu. As firulas inúteis que se discutiram, como ouvir testemunhas nesta ou naquela ordem, incluir ou extirpar parágrafos de relatórios, aventar aspectos processuais, em nada alteraram a natureza fundamental do processo político, que, como diz o nome, era e é político, e não jurídico, como, aliás, apontou o ministro Joaquim Barbosa, no que foi verberado por alguns de seus colegas, a começar pelo presidente do STF.
O destino de um parlamentar levado a julgamento numa Casa do Congresso é traçado pela história das relações construídas ou destruídas e pelas articulações e negociações conduzidas por apoiadores e opositores.
Esse destino não só passa pelas "provas dos autos" no sentido jurídico mas, antes e principalmente, por elementos de convicção inferidos ao longo do processo e colhidos de toda parte, do noticiário da imprensa às conversas ao pé do ouvido. O que se exige é a garantia do direito de defesa, o que, nos casos recentes, numa visada de bom senso em contraposição à visada formalista, foi amplamente satisfeito.
A melhor demonstração de que o acolhimento de manobras de advogados de políticos não tem fundamento prático é que nenhum parlamentar que vote independentemente do que está escrito no relatório pode ser cobrado por isso, nem o resultado da votação pode ser contestado -mesmo porque o relatório é, ele próprio, culminância de um procedimento político, e não jurídico, em que interferem muitos fatores extraprocedimentais. Os parlamentares são a um tempo promotores, advogados de defesa, júri e juízes. Na formação de sua opinião e na consignação de seu voto, não respondem a ninguém senão ao eleitor.
Mais importante ainda, deputados são também testemunhas. O que cada um dos parlamentares conhece sobre a atividade de seus pares, dos agentes partidários e governamentais, dos negócios que se fazem pelos gabinetes, pouquíssimo disso chegando ao conhecimento público, deveria ser suficiente para dissipar qualquer ilusão de que poderiam eles participar de um processo de cassação com a isenção formal imaginada por certos ministros do STF -um dos quais chegou a estabelecer paralelo entre tal processo e aquele decorrente de um atropelamento de trânsito.
O que ocorre num julgamento parlamentar é muito diferente do que acontece num tribunal. Ao menos em princípio, um juiz que decida afrontando o que estiver nos autos, ou que o faça ferindo o rito processual, expõe-se a ter a decisão revertida na instância seguinte.
Sugerir que as convicções que governam o julgamento político precisariam formar-se seguindo o rito processual judicial é pretender ignorar a distinção entre política e direito. Não se pode confundir uma coisa com a outra, sob o risco de transformar a vida política em matéria de advogados.
A confusão que se pretende criar nada tem de doutrinária. Ao contrário, leva marcas de ser intencional, impressão essa que a alegada candidatura Jobim só reforça. Ao se admitir que um magistrado seja candidato a cargo eletivo, destrói-se a separação entre Poderes e se confere legitimidade ao concubinato entre o interesse político e a função mediadora da Justiça. Se de fato existente, a candidatura Jobim é inaceitável.

Claudio Weber Abramo é diretor-executivo da Transparência Brasil, organização dedicada ao combate à corrupção.
(
www.transparencia.org.br e crwa.zip.net)

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