Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, maio 04, 2005

Zuenir Ventura:A coisa aqui tá preta

Por mais que o governo esteja disposto a rever a tal cartilha contra o preconceito e o racismo, como anunciou, o resultado vai continuar sendo inócuo ou até mesmo nocivo, a exemplo do efeito paradoxal de alguns remédios. Primeiro, porque não são as expressões que criam o preconceito, mas o contrário. Depois, porque nem tudo que é bom para os EUA é bom para nós. Importar uma doutrina como a do politicamente correto sem crítica e adaptações oferece o risco de só trazer os seus defeitos: excesso, intolerância, rigidez.


O que fazer, por exemplo, com alguns clássicos da música popular brasileira que aos ouvidos de hoje são preconceituosos ou racistas, como "Mulata assanhada", de Ataulfo Alves ("Ai, meu Deus, que bom seria/Se voltasse a escravidão/Eu comprava essa mulata e prendia no meu coração") ou "O teu cabelo não nega", de Lamartine Babo ("Mas como a cor não pega/Mulata, eu quero o teu amor")? A cartilha vai sugerir que não se ouçam mais essas músicas?

Bem diferente dos EUA, onde impera o maniqueísmo segundo o qual ou se é branco ou se é negro, aqui, na terra da ambivalência, das sutilezas e atenuantes, não se pode levar tudo ao pé da letra, sem considerar o propósito da fala e a dimensão afetiva da linguagem. Uma forma incorreta, mas bem-intencionada, pode não ser tão ofensiva quanto é um conteúdo intencionalmente homofóbico ou racista. Dependendo do tom, "bicha", "negão", "baixinho", "magrelo" são manifestações carinhosas.

Como as palavras têm vida, evoluem, se transformam e às vezes alteram seu significado, como "denegrir" e "judiar", há termos que começam carregando uma pesada carga negativa e, com o tempo, vão perdendo-a e adquirindo uma conotação inversa. Quando o negro Dorival Caymmi canta "Quem vai ao Bonfim, minha nega", ele está querendo dizer "meu amor". O politicamente correto não considera essas nuances e sobretudo não tem espírito crítico nem humor: os eufemismos e circunlóquios que propõe são ridículos.

O governo deu uma recuada, ainda bem. Mas o melhor seria não editar nada, porque se trata de uma questão mais complexa, que não cabe numa publicação que é por natureza normativa: isso deve e isso não. Fico imaginando o que faria a cartilha se, nos anos de chumbo, durante as trevas — epa, desculpe, durante o tempo nublado — um compositor branco de olhos azuis, sogro orgulhoso de um negro e avô de um mulato, compusesse o seguinte verso para falar da situação política de então: "A coisa aqui tá preta".
O GLOBO

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