Assim como o filósofo francês Jean Baudrillard utilizou a metáfora hegeliana do mestre (senhor)/escravo para analisar a situação hegemônica dos Estados Unidos no mundo, numa palestra feita em Istambul no início do mês que comentei na coluna de domingo, podemos também fazer uso dela para analisar a relação do governo Lula com o Fundo Monetário Internacional, sob o ponto de vista da esquerda petista.
Tudo indica que a relação do FMI com o governo brasileiro já passou da fase de dominação, como era classificada pelos petistas que gritavam "Fora FMI", para se transformar, no governo Lula, em hegemonia, quando o escravo, mesmo emancipado, interioriza o senhor.
Assim, o fim do acordo com o Fundo Monetário Internacional não provocou qualquer alteração nos rumos da economia traçados por Antonio Palocci (Fazenda). Ao contrário, o rompimento "amigável" trouxe para dentro do governo, no segundo posto na hierarquia do Ministério da Fazenda, justamente Murilo Portugal, o representante brasileiro no FMI, ex-secretário de Tesouro da equipe de Pedro Malan .
Na entrevista coletiva da semana passada, o que se viu foi um presidente defendendo, de tal maneira enfático, a necessidade de se fazer o superávit fiscal, de se atingir o centro da meta de inflação, de não se fazer aventuras na economia, que desmontou, por exemplo, o discurso do ex-prefeito de Porto Alegre Raul Pont, da facção trotkista Democracia Socialista.
Um dos três candidatos já lançados pelas muitas esquerdas do PT contra a reeleição de José Genoino, o candidato do Campo Majoritário, de onde controlam o partido Lula, José Dirceu, Palocci; Pont assumiu um discurso que aparentemente é a favor de Lula e contra a política econômica de seu governo, como se isso fosse possível. "Lula não é a favor dessa política de juros altos", diz Pont, para quem sua vitória à presidência do PT daria os meios políticos para Lula dar uma guinada em seu governo. Como se Lula quisesse.
Pois Lula deixou claro na entrevista coletiva que não quer fazer qualquer tipo de "mágica" na economia, ao apoiar incondicionalmente a política ortodoxa que o ministro Antonio Palocci vem adotando. Como a entrevista foi vista como a peça mais consistente até agora da campanha pela reeleição que já começou, ficou clara ali a estratégia que será adotada: como em 2002, não haverá lugar para polêmicas, para guinadas radicais, estará de volta o Lulinha Paz e Amor que se sente tão seguro da reeleição que já promete luz para todos até 2008, no meio de seu virtual segundo mandato.
Virtual aqui no sentido de factível, não a virtualidade baudrillardiana de que é acusado pela oposição, que seria um governo existente apenas em potencial, sem correspondência na realidade. Esse governo virtual é mais uma vez produção de Duda Mendonça, que, recuperado da depressão depois de ter sido preso em uma rinha de galos de briga, treinou o presidente Lula para a entrevista coletiva e cuidou tão bem de seu visual que o consultor de modas Julio Rego disse que Lula "parecia até um estadista".
Ficou claro na coletiva que quanto mais se aproxima a corrida pela sucessão, menos espaço vai haver para os arroubos dos petistas insatisfeitos com os rumos do governo, e mais espaço será aberto para as alianças políticas heterodoxas, como a com o "aliado" Severino Cavalcanti. Pragmático como só um líder sindical sabe ser, Lula entende que se sua popularidade estiver em alta no início do próximo ano, terá a maioria dos partidos políticos disputando um lugar na sua chapa.
Mas sabe também que será inexoravelmente abandonado se o faro dos políticos indicar que o vento está mudando de direção, que a opinião pública já não tem mais paciência para as promessas que não se realizam e para as críticas ao governo feitas pelo próprio Lula, como se ele fosse um ente superior, acima dos erros do seu governo.
Até agora tem dado certo, e ele tem mais popularidade que seus ministros. Mas Lula está diante de um paradoxo ameaçador: sua popularidade deve-se essencialmente à sua capacidade de se comunicar com o público, principalmente os mais pobres. Ao mesmo tempo, a capacidade de dizer besteiras aumenta proporcionalmente à quantidade de vezes que fala de improviso.
E se as besteiras não são compreendidas pelo povão, que pode até mesmo gostar de ver o presidente mandar os com-conta bancária "levantar o traseiro", elas, junto com a ineficiência do governo, afastam cada vez mais o presidente da classe média, que foi parte importante — para alguns analistas até mesmo decisiva — da vitória em 2002.
Mas, voltando à relação mestre/escravo, Baudrillard diz que a hegemonia é o estado supremo da dominação, e ao mesmo tempo sua fase terminal. No caso da relação do governo brasileiro com o FMI, é possível dizer que ao interiorizar os conceitos do FMI e adotá-los sem que nada o obrigue a isso, o governo petista passa a se comportar como os governos que xingava de neoliberais, e a ser vítima das mesmas acusações que fazia ao governo de Fernando Henrique. (Por falar em "xingar" de neoliberais, é interessante notar que na ridícula cartilha politicamente correta que o governo pretende distribuir, é considerado ofensivo chamar alguém de comunista, mas não de neoliberal).
Desta vez o governo será alvo das críticas não apenas dos partidos de esquerda radical como o PSTU e o PSOL da senadora Heloisa Helena. O PT será atacado pela oposição formal, talvez com candidaturas separadas do PSDB e do PFL, e também pelo representante do populismo religioso, o ex-governador do Rio Anthony Garotinho, provavelmente com a legenda do PMDB. Vai ser preciso fazer muita pirotecnia virtual na telinha para escapar do próprio veneno.
O GLOBO
Entrevista:O Estado inteligente
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terça-feira, maio 03, 2005
Merval Pereira:Reeleição virtual
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