O consenso , na sociedade e no Estado, em torno da política externa brasileira tem sido historicamente alto, pelo menos ao longo dos anos que sucederam a Segunda Guerra. Respeitada universalmente por amigos e adversários, por sua confiabilidade e "preditibilidade", nossa diplomacia manteve, em meio a mudanças de governo e de regime, uma coerência básica indiscutível, orientações que consistiam em subordinar o conjunto de nossas relações bilaterais, regionais e multilaterais a um objetivo vital para nossa sobrevivência enquanto Estado independente: o de garantir um ambiente internacional favorável ao nosso crescimento econômico.
Esse objetivo, que resistiu às turbulências sucessórias do regime militar, à redemocratização e à crise do impeachment de Collor, foi acrescido de um aspecto até então negligenciado e secundário em nossa política econômica doméstica, o da estabilidade. Com isso, durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso o objetivo central de nossa política externa passou a incluir o ambiente externo favorável -não somente ao nosso crescimento econômico mas também à estabilidade financeira.
Todos os aspectos mais conhecidos de nossa política externa, a começar pelas posições defendidas nas negociações comerciais multilaterais (OMC) e regionais (Alca, Mercosul, Mercosul/União Européia), nossa reviravolta com a adesão ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear e regimes conexos -adiada por cerca de 40 anos-, nossas posições com relação aos regimes relativos a direitos e valores globais (proteção ao meio ambiente, direitos humanos, direitos dos povos etc.) e nossa atuação reiteradas vezes no Conselho de Segurança da ONU, como membro não-permanente, vinham mantendo sua consistência, para além de incoerências pontuais inevitáveis, devido ao papel organizador representado por aquela prioridade central.
Mas o alto consenso ao longo do último século em torno da política externa operada pelo Itamaraty nem de longe se assemelha ao extraordinário consenso formado no governo e nos partidos, na oposição e na academia, no país e no exterior em torno da política externa adotada pelo atual governo e precocemente apodada de "ativa e altiva". Contam-se nos dedos aqueles que desde logo se mostraram céticos quanto à justeza dessas ações de política externa e a sua convergência com o interesse nacional. Desde logo consenso e aprovação contrastaram drasticamente com as numerosas divisões e contestações a que foram submetidas praticamente todas as ações e políticas adotadas por Lula e que, entre outras coisas, levaram a uma verdadeira paralisia decisória.
Somente na última semana, apesar dos sinais de alarme soados por iniciativas pretensiosas, improvisadas e sem conseqüência, por sucessivos incidentes diplomáticos, demonstrações de força sem precedentes à custa do orgulho nacional de nossos vizinhos, quase sempre atribuídos ao pecadilho da gafe e à personalidade extrovertida e simplória do presidente, caíram-se as escamas dos olhos da opinião pública. Subitamente não somente o rei mas o próprio país se descobriu nu e solitário no deserto, abandonado por todos os que ontem eram considerados seus seguidores incontestes na América Latina e entre os países emergentes. E nem sequer consegue prestar seus bons ofícios ao governo Bush, esnobado por um suposto fiel escudeiro, o coronel Chávez.
Por que essa reviravolta? Porque o governo Lula está perseguindo simultaneamente três objetivos não necessariamente compatíveis e crescentemente conflitantes. Ao objetivo tradicional da diplomacia econômica foram acrescentados dois outros: a agenda internacional pessoal do Lula, voltada para lhe garantir um patamar de onde possa exercer o papel de liderança realizadora que lhe é negado domesticamente; e a agenda política da coalizão atualmente encravada na direção da diplomacia, que sonha em impor ao mundo uma ordem internacional alternativa, que favoreça os interesses supostamente convergentes de países como China, Índia e Venezuela, em detrimento dos países que hoje dominam a cena internacional, como os EUA, Japão, União Européia e, de modo geral, os países ricos da OCDE.
Sonho a léguas da realidade, essa oposição entre o mundo dos justos e pobres do eixo Sul-Sul e o mundo do mal encarnado pelo capitalismo globalizado é incompatível com a continuidade da agenda econômica que engloba nossas relações com o FMI, o Bird, a OMC e a própria OCDE, além de incompatível com a realidade de nossa pauta comercial e financeira. O afã de dar a Lula um papel de líder entre os líderes é enormemente presunçoso, suscita rivalidades e é incompatível com a expectativa de liderança benigna e legítima que o Brasil vinha desfrutando nos últimos 15 anos.
Enquanto a política externa não recuperar sua hierarquia de prioridades, o Brasil verá seu interesse nacional seguidamente a reboque de vaidades pessoais e ideologias do século retrasado.
José Augusto Guilhon Albuquerque, 64, é professor titular do Departamento de Economia da FEA-USP e autor do projeto pedagógico do bacharelado em diplomacia e relações internacionais da Universidade São Marcos.
Folha de S.Paulo
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