No sistema internacional, comércio e estratégia correm em trilhos diferentes. Estratégia é sobre segurança, poder e valores. Comércio é sobre desenvolvimento. Mesmo no caso de blocos como a União Européia ou o Mercosul, as duas esferas da cooperação regional subordinam-se a regras e mecanismos de decisão distintos. A Cúpula América do Sul-Países Árabes desafiou esse princípio, com prejuízos tanto para o comércio quanto para a estratégia. Ela é uma síntese dos dilemas de uma política externa que se tornou refém das miragens desenhadas pelo seu próprio discurso.
O formato de uma cúpula de chefes de Estado sugeria a primazia da estratégia. As prioridades comerciais proclamadas pelo Itamaraty redundaram na ausência dos principais líderes árabes e de alguns líderes sul-americanos. Celso Amorim minimizou o esvaziamento da reunião, enfatizando seus objetivos econômicos. Lula abriu a conferência destacando sua natureza política. A declaração final veste os conceitos de terrorismo, soberania nacional e resistência à ocupação com a linguagem escorregadia da ambigüidade. O Brasil tentou sem sucesso inserir uma menção à democracia, atendendo à solicitação de Condoleezza Rice. Os governos árabes, muitos dos quais alinhados a Washington, emplacaram um elogio à "diversidade cultural", que é expressão cifrada de legitimação de ditaduras. O epitáfio da declaração surgiu antes mesmo da redação final, na frase reveladora de Amorim: "Cada um lerá da maneira que entenda".
O divórcio entre a palavra e o fato é sempre a melhor evidência da renúncia ao realismo. Lula voltou a delirar sobre a sua "nova geografia econômica do planeta". Os argentinos denunciaram o virtual colapso do Mercosul. Hugo Chávez citou Amorim para anunciar uma "nova geopolítica" baseada na cooperação sul-sul. Os dois principais líderes árabes presentes, o do Iraque e o da Palestina, representam países sob ocupação estrangeira. O presidente iraquiano Talal Jalabani, cuja segurança pessoal foi supervisionada por agentes do serviço secreto americano, descreveu a invasão militar de seu país como "uma guerra do povo contra a ditadura". Lula ofereceu ao palestino Mahmoud Abbas, também conhecido por Abu Mazen, uma aula sobre as virtudes da paciência na política. Um indisfarçável tom farsesco contaminou os discursos.
Lula e Amorim parecem impressionados pelas suas próprias proclamações extravagantes. A operação militar e policial de fechamento, cerco e captura de Brasília, que mimetizou as reuniões do G-7, não encontra justificativas na lógica da segurança. Mas ela traduz o ânimo de uma política externa embriagada pela vontade de potência: o Brasil emerge da injusta obscuridade, afirma a sua condição de "líder natural" da América do Sul, apresenta-se ao mundo como protagonista da restauração do Terceiro Mundo e candidata-se a um lugar cativo entre as grandes potências do planeta.
O ácido das expectativas inflacionadas corrói o sentido de proporção, e o rufar de tambores da patriotada encobre o som das críticas. Amorim, auxiliares e áulicos protegem-se atrás da paliçada de suas certezas, imaginam que os críticos são inimigos e fingem que a realidade é uma invenção da mídia. Infelizmente, não é.
FOLHA DE S PAULO
Entrevista:O Estado inteligente
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