Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, maio 13, 2005

De frente para o crime

13.05.2005 | Eu vi o Bem-Te-Vi. Juro. Contado assim, ninguém acredita. Meus amigos duvidaram, à noite, na calçada do Bracarense. A empregada lá de casa, que mora na Rocinha, riu na minha cara. “Eu nunca vi”, garante. Nem ela nem os outros 249.999 moradores da favela ‘sabem’ quem ele é. E se o virem, não o reconhecem de jeito algum. Mas eu vi. Eu, um amigo jornalista e uma fotógrafa da Croácia, o que parece mais absurdo ainda. Mas foi ela o motivo de nossa ida à Rocinha. A moça, freelancer de agências internacionais, há quatro dias no Rio, queria conhecer de perto uma favela carioca.

Sugerimos a Rocinha. A maior do Rio, a mais internacional, bem localizada entre o eldorado emergente da Barra e de São Conrado e a boemia da Gávea e do Leblon. Fizemos o caminho oficial que qualquer jornalista recém-formado sabe de cor para entrar numa favela da cidade e fomos, à tarde, direto para a associação de moradores. Não é o local nem o emprego mais seguro do mundo (dos últimos cinco presidentes antes do atual, dois estão presos e três foram assassinados). Mas o protocolo obriga. Explicamos o objetivo da croata ao atual presidente e pedimos algumas informações sobre as atividades dos voluntários na comunidade. Ele não vê a hora de acabar o mandato para ir embora de lá. “É muita pressão.”

Guiados por um morador da favela, fomos dar uma volta. Rua Um, Via Ápia, dobra aqui, segue dali, entra de novo acolá, pára pra tomar uma cerveja, pagar um salgado, ouvir histórias da favela. Quando vimos, tinha homem armado por tudo quanto é lado. Do nada, apareceu o Bem-Te-Vi, que, tranqüilo, fez sinal para que nos aproximássemos. Galante, com fama de namorador, talvez tenha se impressionado com a patricinha européia e loura que desfilava por seus domínios. Tá na moda essa relação. Óbvio que já sabia quem a gente era. Enquanto esperávamos nosso guia num bar da favela, um de seus homens – que depois vi no grupo – nos ‘filmou’ de cima a baixo.

A comunidade de 250 mil habitantes é hoje dominada por ele, que deve ter uns 25, 27 anos, pistola automática na cintura, cercado de homens com fuzis importados que brilham assustadoramente em contraste com a cor indefinida de alguns valões a céu aberto. O cheiro de maconha no ar supera o de esgoto mal-tratado. Conversamos com Bem-Te-Vi por uns 15 minutos, de pé. Não foi uma entrevista. Ele sabia que éramos jornalistas, estava bravo, apesar da aparência calma, por ter, segundo disse, acabado de ser extorquido por alguns maus policiais. Morrera em R$ 60 mil para libertar um dos gerentes de suas bocas: R$ 30 mil à vista e a promessa de entregar em breve outros R$ 30 mil. Precisava falar. E, instigado por nós, falou. E nós, no meio de vários homens armados, um tanto quanto tensos por aquela situação inesperada, ouvimos, claro. Até um elogio à beleza da jovem croata.

Erismar Rodrigues Moreira, o Bem-Te-Vi, se comporta com a segurança de quem é ‘O Cara’, como gosta de dizer um certo baixinho marrento do futebol. E esse cara está orgulhoso da paz momentânea que vive a Rocinha, um período sem guerras desde o conflito deflagrado em 2003. Com a invasão de Dudu (antigo chefão do pó na favela), a morte de Lulu (o então chefe) pela polícia, a guerra com o Vidigal (do Terceiro Comando) e a sucessão no comando do pó, dividido até bem pouco tempo entre ele, Bem-Te-Vi, e um bandido conhecido como Lion.

O duplo comando com bandidos de personalidades e estilos opostos deu problema. “Lion não ouvia ninguém. Resolvia tudo na violência. Esculachava morador sem mais nem menos. Eu não faço com ninguém o que não quero que façam com a minha família”, diz Bem-Te-Vi que segue a linha de Lulu, a quem os moradores da favela, diante do inevitável e da ausência do Estado, preferiam no comando do tráfico ao terrível Dudu e seus métodos violentos.

De Lulu, Bem-Te-Vi adotou o discurso de protetor de uma comunidade abandonada pelo poder público. Versões que circulam dentro e fora da favela dão conta que Lion fugiu da Rocinha depois das desavenças com Bem-Te-Vi. O comando passou a ser só dele, mais preocupado com a administração dos negócios da ‘firma’ (as bocas-de-fumo) do que com demonstrações ostensivas de poder. Como se as armas que ele e seu bando carregam não falassem por si só. Para que as incontáveis bocas-de-fumo sob seu comando funcionem a pleno vapor, montou uma rede assistencialista na comunidade que garante o silêncio cúmplice de seus moradores. Também conta com a bem remunerada – vista grossa de alguns maus policiais para o entra-e-sai de viciados na favela.

– A ‘firma’ tá quebrada – garante. – Peguei isso aqui com uma dívida de mais de R$ 500 mil (ao Comando Vermelho por compra de drogas e adiantamento para propinas feito pelos sócios do CV, ainda no tempo do Lulu). Depois da guerra, o movimento aqui, que era de 300%, caiu para 100%. Tenho que dar R$ 4 mil e pouco pros policiais nos dias de semana e R$ 10 mil nos fins de semana. Tenho mais de 100 homens para pagar. Se eu quisesse ficar rico, largava isso tudo aqui e escrevia um livro, dava depoimento para TV contando como funciona essa coisa toda.

Lembrei na hora do abusado Marcinho VP, do Dona Marta, que ganhou notoriedade com vídeo, virou personagem de livro, faliu sua ‘firma’ e acabou assassinado dentro da cadeia pelos ex-aliados do crime por falar demais. Articulado como ele, Bem-Te-Vi foge ao estereótipo dos bandidos que se multiplicam pelas favelas da cidade e volta e meia assumem o lugar de inimigo público número um alardeado pela polícia e multiplicado pela imprensa. Mas, ao contrário de VP, garante que não quer publicidade para não ter o mesmo destino. O cara, o homem, o dono da ‘firma’, tem o discurso na ponta da língua e fala pausadamente mesmo depois de morrer naqueles R$ 60 mil da ‘mineira’ relatada aí em cima.

– Vejam só ali embaixo, aquela feirinha (na entrada da favela) montada com dinheiro da Unesco que o estado pegou. Quando custou aquilo? Um milhão? É suficiente para eles acharem que fizeram alguma coisa e virarem as costas pra comunidade no dia-a-dia. O cara que tava aqui era o terror (Lion). Preferia dar tiro na cabeça das pessoas a saber qual era o rolo. Tem que escutar as pessoas. Tiro pela minha família. Não quero isso pra ninguém. As pessoas são hipócritas em relação à situação das favelas. Garotinho mesmo falou isso na época do Tim Lopes (repórter da Globo que filmou a feira do pó no Morro do Alemão e depois acabou assassinado pelos traficantes que denunciara): “Qual a novidade disso? Todo mundo sabe que se vende drogas nas favelas, que tem fila do pó, viciados cheirando nas vielas. Por que não filmam o tráfico de drogas na Vieira Souto, com grã-finos cheirando cocaína em bandejas de prata de frente pro mar?”, o traficante cita de memória declarações do então governador.

Enquanto fala, ao seu redor, vários homens garantem sua segurança com fuzis automáticos. Mais afastados, alguns outros operam rádios transmissores e levam pistolas automáticas nas mãos e na cintura, às vezes duas enfiadas nas bermudas em nada diferentes das do resto dos moradores da comunidade. Conversam animados sobre a potência de suas armas e ações passadas em guerras com a polícia ou inimigos de outras favelas. Atrás do chefão, tem uma pichação na parede: ADA: Amigos dos Amigos, organização criminosa que teria se aliado ao Comando Vermelho na guerra da Rocinha contra o Vidigal. Amigo é como eles se chamam dentro das favelas. Palavra que, no contexto do morro, quer dizer o oposto de alemão (inimigo), e que freqüenta a boca de meninos recém-saídos das fraldas enquanto os pequenos contam, com desembaraço, histórias de bondes, armas, guerras e invasões. Como se viver assim, num estado armado, encravado no meio do caminho dos emergentes da Barra para o resto da cidade, fosse a coisa mais natural do mundo.

– Vocês (jornalistas) vêm aqui para contar as vítimas de cada guerra, mas por que não falam de quem é vítima da polícia quando ela entra no morro atirando? – questiona Bem-Te-Vi, com a aprovação dos que o cercam.

Para a comunidade do estado ausente, ele é o poder visível. O poder das armas (seu exército), o poder do dinheiro (a venda de drogas), o poder da lei (“aqui ninguém rouba, se mexerem no teu carro daqui a pouco te entrego a cabeça do cara que fez isso”, diz um de seus ‘amigos’) e o poder político (o celular não pára de tocar, a fila de pedidos chega a deixar o bandido meio constrangido). Uma menina de no máximo oito anos interrompe a conversa de um dos traficantes mais procurados do Rio com os jornalistas e pede a ele: “Dá um real aí?”. Bem-Te-Vi mete a mão no bolso de trás da bermuda, tira um bolo de notas e dá uma de dois reais à garota.

Assistencialismo? Faz parte da estratégia. Depois de uma noitada em que os viciados garantem o faturamento das inúmeras bocas que se espalham da Via Ápia aos rincões menos conhecidos da favela, às cinco da manhã o bandido determina a distribuição de cestas básicas aos moradores mais carentes.

– Isso ninguém vê – afirma. – Mas também não pode vir fotografar. Sabe por quê? Minha cabeça hoje vale R$ 5 mil (pelo Disque-Denúncia). Não é nada diante do dinheiro que tenho de gastar para fazer coisas aqui. Mas na Rocinha, nove em cada 10 moradores fugiram da miséria no Nordeste, da fome. Vai que um paraíba desses me vê por aí e acha que R$ 5 mil vão resolver a vida dele, me entrega pra polícia e aí começa a guerra de novo – raciocina.

Guerra que, segundo relatos da comunidade, já dura 40 anos. Os moradores da Rocinha não vivem no meio de um fogo cruzado esse tempo todo porque querem. E sim porque precisam ou não têm opção. “Aqui é assim: quem tá dentro quer sair, quem tá fora quer entrar (numa alusão aos jovens de classe média que vêm atrás de drogas e querem viver na favela), crente que isso aqui é um paraíso. Não é”, nos havia dito um dos funcionários da associação de moradores quando chegamos à Rocinha..

Da prisão do último presidente da associação, William de Oliveira, com quem teria tido conversas interceptadas e gravadas pela polícia, Bem-Te-Vi aprendeu a não tratar de ‘negócios’ ao telefone. “Comigo agora é tudo no pé do ouvido. Chamo o cara que eu preciso e dou uma idéia, baixinho”, ri.

A noite cai, o cheiro de maconha aumenta. Homens de terno e gravata, trabalhadores, moças com calças apertadas na tensão do inimaginável, jovens com boas roupas chegam para as compras em meio aos gritos de uma feira livre. “Pó de 10, de 20, olha a macooonha!!!!”

A Polícia fecha o cerco ao morro, com seus carros nas entradas da favela, os moradores fecham o cerco dos pedidos ao traficante. É hora de Bem-Te-Vi ficar invisível, cuidar da firma. A venda de drogas na Rocinha é tão intensa quanto o comércio alternativo à economia oficial que toma conta de suas ruas com barracas de CDs e DVDs piratas (os últimos lançamentos de Hollywood e das paradas de sucesso), das confecções sem grifes, do comércio de farinha (de verdade) e de outros produtos do Nordeste que garantem a subsistência daquelas famílias de exilados em seu próprio país.
É hora também do nosso trio ir embora. Sem olhar rostos, nem virar para trás. A croata, criada num país reconstruído após uma guerra violentíssima que acabou há uns 10 anos, vai fundir a cabeça pra entender essa nossa guerra sem fim no meio de uma paisagem de sonho a seus olhos.

Ah, eu vi o Bem-Te-Vi. Mas não lembro da cara dele não.


no minimo

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