Muito atrevimento e nenhuma vergonha: essas linhas básicas sempre orientaram Severino Cavalcanti quando encarna o papel de advogado de colegas suspeitos. Parlamentares acusados de envolvimento em casos de corrupção, grossas bandalheiras e mesmo assassinatos invariavelmente contam com a mão solidária (e a cumplicidade ativa) do guerreiro pernambucano.
O corporativismo agudo, origem das descaradas manifestações de menosprezo à ética, é apenas um dos defeitos de Severino. Mas talvez tenha influenciado como nenhum outro sua sagração como bispo maior do baixo clero do Legislativo. Os brasileiros só foram apresentados ao falastrão baixo e atarracado depois do salto que o levou ao papado sem escalas no cardinalato. Mas a Câmara conhecia há muito tempo o velho-novo presidente.
Severino fazia parte da Mesa Diretora havia anos, infiltrado em cargos enganosamente secundários. Não existem cargos irrelevantes. Um segundo-secretário parece quase nada. E todavia pode muito, sobretudo quando a vaga é ocupada por um corporativista sem fronteiras. Mas ninguém pode tanto quanto o presidente. E Severino chegou lá.
Muitos eleitores da zebra vitoriosa queriam apenas atazanar o Planalto. Alguns não sabiam o que faziam ao celebrarem a aliança com clérigos da seita severina, que sempre souberam o que queriam fazer. Deu no que deu. E está dando. Na terça-feira, o presidente da Câmara, com o endosso unânime da Mesa, comandou o arquivamento do processo que ameaçava o amigo e correligionário Pedro Corrêa, presidente do PP.
O recado em código pode ser decifrado até por recém-nascidos: Severino avisava que, no dia seguinte, faria o possível para livrar da guilhotina o deputado fluminense André Luiz, sem partido (e sem pretendentes). A subida ao cadafalso, isso nem tentara evitar. Seria demais.
Há meses, a divulgação de uma fita gravada atestou que André Luiz tentara extorquir R$ 4 milhões do bicheiro Carlinhos Cachoeira (aquele das patifarias protagonizadas por Waldomiro Diniz, ex-assessor de José Dirceu na Casa Civil). Em troca, tiraria o bicheiro do caminho de investigações em curso no Parlamento.
Confirmada a autenticidade da gravação (em meio à qual André Luiz se gaba de ter ordenado a morte de inimigos), a Comissão de Ética recomendou a cassação do mandato de um homem pilhado em flagrante de extorsão. Como o jargão do Congresso manda substituir palavras fortes por eufemismos espertos, atribuiu-se ao extorsionário um crime pouco assustador: "quebra do decoro parlamentar".
Recursos encaminhados pelo réu ao Supremo Tribunal Federal foram rechaçados. O processo se arrastou até ontem, data marcada para o epílogo no plenário. Em votação secreta, os deputados deveriam decidir: André Luiz pára ou continua?
Autor do parecer que recomendou a degola, o deputado Gustavo Fruet, do PSDB paranaense, resumiu com objetividade as opções disponíveis. "Se ele for cassado, terá ocorrido um procedimento natural. Se for absolvido, estaremos legitimando a extorsão". Fosse outro o país, fosse outro o Legislativo, a segunda hipótese só existiria nas fantasias de André Luiz. Mas estamos no Brasil, e aqui os deputados deliberam em segredo sobre questões que lhes causam constrangimentos. Cassações, por exemplo.
A nação quer saber como votou cada um dos supostos representantes do povo. O voto secreto dispensa o ilustre eleitor de mostrar a cara. Não serão identificados, assim, os deputados que votaram pela absolvição de André Luiz. Acham que não houve nem mesmo quebra do decoro. Deveriam ser todos presos por atentado violento ao pudor.
JB
Entrevista:O Estado inteligente
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