Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, maio 05, 2005

Argentina e Brasil-PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.


Antes mesmo do término da Segunda Guerra, de Gaulle compreendeu que o futuro da França dependia de uma aliança com a Alemanha. Na outra margem do Reno, Adenauer já formara a mesma idéia havia muito tempo. Dessa convergência, nasceu o núcleo original do que hoje é a União Européia.
Para de Gaulle, a preferência pela aliança com os antigos inimigos mortais derivava da percepção de que a França não poderia sustentar, por conta própria, uma posição de autonomia e influência internacional no mundo do pós-guerra dominado por duas superpotências: os Estados Unidos e a União Soviética. A Inglaterra não era confiável como parceira estratégica, pela sua proximidade histórica, cultural e política com os Estados Unidos -proximidade que o brutal esforço de guerra transformara em dependência econômico-financeira sem precedentes para os britânicos. Independentemente dessa circunstância do imediato pós-guerra, "o Atlântico Norte é mais estreito que o canal da Mancha", como dizem os franceses.
A preferência pela aproximação com a Alemanha tinha outra razão, menos conhecida: a admiração pelos alemães. Ainda durante a guerra, de Gaulle fez uma visita a Stalingrado, campo da duríssima batalha vencida pela União Soviética e que marca o início do processo que levaria à derrota da Alemanha. Os seus anfitriões percorreram com ele o terreno e deram explicações pormenorizadas sobre o desenrolar da luta. De Gaulle comentou: "Grande povo!". Quando o intérprete traduziu para o russo, os soviéticos deram as naturais demonstrações de satisfação. De Gaulle esclareceu, sem ser traduzido (suponho): "Estou me referindo aos alemães".
Dei toda essa volta para tentar dar um sopro de grandeza a um tema muito presente no noticiário nos últimos dias: os desentendimentos entre Argentina e Brasil. "Mutatis mutandis", Argentina e Brasil são, ou podem tornar-se, no plano sul-americano o que Alemanha e França são para a Europa. Análogas razões de política internacional aconselham uma aliança estratégica entre nossos países. Essa aliança pode ser um elemento essencial para fortalecer a autonomia nacional e a capacidade de negociação dos dois países, particularmente com os EUA e a própria União Européia.
Argentinos e brasileiros são muito diferentes, não raro opostos em muitos traços do seu caráter nacional. Mas não mais do que alemães e franceses, por exemplo. E essas diferenças atraem; graças a elas, os nossos povos podem complementar-se e enriquecer-se mutuamente.
Proliferam intrigas, boatos e ruídos. Os governantes argentinos e brasileiros pisam na bola, volta e meia, levando água para o moinho dos que querem reavivar antigas disputas e rivalidades.
A quem interessa afastar Argentina e Brasil? Sempre haverá prioridades divergentes, diferenças de opinião e de situação nacional. O que não se deve permitir é que essas divergências sejam magnificadas por redes de intrigas, prejudicando os nossos objetivos estratégicos.
Nos dois países, há grupos influentes que, por motivos variados, vêem com desagrado a aproximação entre argentinos e brasileiros. Esses grupos davam as cartas nos anos 90. Agora, o quadro é outro. A mudança foi (como sempre) mais dramática na Argentina do que no Brasil. Os argentinos passaram do alinhamento automático aos EUA ("relações carnais", na infeliz expressão de um ministro do governo Menem) para uma posição declaradamente nacionalista.
O Brasil, tipicamente mais cauteloso e pragmático, oscilou bem menos. Na década passada, não foi tão longe na subordinação aos Estados Unidos e ao chamado Consenso de Washington, mesmo nos piores momentos. Com o governo Lula, a política externa mudou bastante em comparação com os tempos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso. Acentuou-se a preocupação com a autonomia nacional e com a recuperação da iniciativa do país em matéria de relações internacionais. Tudo isso sem os esplêndidos rompantes quixotescos dos nossos aliados argentinos.
Apesar dessas cautelas, muitos resistem às mudanças, inclusive dentro do governo brasileiro. Assim, tudo tem que ser feito com grande habilidade. Um erro os defensores da aliança com a Argentina certamente não cometerão: comportar-se como líder da América do Sul.
Sintomaticamente, quem andou proclamando essa liderança, nesta semana, foi o embaixador dos Estados Unidos no Brasil. Segundo ele, "a liderança brasileira é um fato, uma realidade na região e no mundo".
Hmmm...
FOLHA DE S.PAULO

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