O GLOBO
Na esteira das negociações para a compra de material bélico com o compromisso de transferência de tecnologia, o Ministério da Defesa está preparando um conjunto de medidas que mudará praticamente todo o arcabouço jurídico do sistema de defesa nacional, plano que foi apresentado às lideranças partidárias na semana passada. O deputado Raul Jungmann, membro da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa da Câmara, considera que “estamos tendo a maior mudança em meio século, talvez um século, dentro da estrutura de defesa e das Forças Armadas
Mudará a estrutura do próprio Ministério da Defesa, com a criação do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas, sob controle do Ministro da Defesa, o que não acontecia antes. Na definição de Jungmann, “o impasse foi rompido e o nervo do poder, que permanecia fora do Ministério da Defesa, agora vem para dentro”.
Os diversos projetos de lei que compõem a reformulação do sistema de segurança darão condições para a criação de um complexo industrial-militar, com mudanças na lei das licitações, criando um regime especial para a indústria bélica e mexendo na participação do capital, com o país voltando a ter sociedade em empresas de material bélico, com direito a “golden share”.
Por isso a ênfase que o governo está dando à transferência de tecnologia nos contratos que está negociando, tanto com a França — com a compra dos submarinos, inclusive um nuclear, já fechada — quanto com os Estados Unidos e a Suécia no caso dos caças, que devem acabar mesmo sendo os Rafale franceses.
Expedito Bastos, pesquisador de assuntos militares da Universidade Federal de Juiz de Fora, lembra que “no passado, não muito remoto, guardadas as devidas proporções, fizemos algo parecido em outras áreas, e nossa indústria de material de defesa teve um breve auge e uma grande agonia, e não aprendemos muito com aquele passado, até porque não aprendemos ainda a copiar”.
Já Clóvis Brigagão, diretor do Centro de Estudos das Américas da Universidade Candido Mendes, lembra que haver transferência de tecnologia importa mais se houver transferência desse conhecimento para o uso civil, “coisa que não ocorreu durante o regime militar, com a indústria militar criada; nada foi transferido daquela indústria militar para o uso civil”.
O deputado Raul Jungmann considera que essas mudanças estruturais, que chegarão ao Congresso na forma de diversos projetos de lei, complementarão a grande mudança institucional acontecida no governo Fernando Henrique, que foi a criação do Ministério da Defesa.
Na sua visão, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, está “substantivando o cargo”, que até o momento é um vazio em termos de poder real.
Para Jungmann, a origem desta mudança está na crise aeroportuária, no chamado “apagão aéreo”, quando houve uma quebra de hierarquia com a autorização para que o Ministério do Planejamento negociasse diretamente com os controladores de voo, contornando a autoridade do chefe da Aeronáutica, brigadeiro Junito Saito.
“Naquele instante Lula chama o Jobim para assumir o Ministério da Defesa, e ele começa a trabalhar sobre a institucionalização da estrutura do ministério, de comum acordo com os militares”, analisa Jungmann.
Entre os projetos, está sendo criada uma segunda frota, que vai para a fronteira na Amazônia; serão remanejados todos os contingentes aerotransportados para o centro do país, com as brigadas de ação rápida; mudará o decreto de guerra, que é de 1980; e haverá um tratamento especial para o preparo e emprego das Forças Armadas em situação de paz e a garantia de lei e de ordem.
A atuação das Forças Armadas no combate ao crime organizado nos centros urbanos é um dos temas mais delicados da segurança nacional, e um dos primeiros que o ministro Nelson Jobim classificou como prioritário ao assumir o cargo.
A nova estrutura legal que permita a atuação eficaz dos militares nos conflitos internos, as chamadas “guerras assimétricas” do Estado contra organizações criminosas, tem que ser cuidadosamente montada, e o exemplo é a atuação bem-sucedida do Exército brasileiro no comando da Força de Paz da ONU no Haiti, onde conseguiu retomar o controle de territórios que eram dominados por gangues paramilitares.
Uma das reclamações recorrentes dos comandantes militares é que os políticos, ao chamarem publicamente o Exército para ajudar no combate ao crime organizado, não tratam de questões fundamentais de ordem legal para proteger os soldados brasileiros que participem de ações urbanas.
Na nova legislação, os militares que atuarem na garantia da lei e da ordem em tempo de paz serão julgados pelas leis militares. No acordo do Haiti com a ONU estão incluídos “privilégios” da tropa, que na verdade são garantias dos militares para desenvolver suas atividades.
Ao contrário, no Brasil, o Exército não tem até hoje amparo legal para atuar nessas operações. Segundo os comandantes militares, se não for dado “poder de polícia” às Forças Armadas, os soldados correrão o risco de uma condenação por causa de uma operação.
Esse “poder de polícia” será dado ao Exército, nas ações de fronteira; à Marinha, no patrulhamento interno e das águas jurisdicionais brasileiras; e à Aeronáutica, no trabalho de patrulhamento, que já tem o reforço da Lei do Abate.
O deputado Raul Jungmann saúda essas mudanças, mas lembra que o país não está equipado institucionalmente para lidar com grandes compras de material bélico como as que estão acontecendo agora: “Sem institucionalização, ficamos como agora: come-se uma moqueca e de sobremesa levamse 36 aviões”, ironiza, referindose à provável compra pelo Brasil dos aviões franceses.
(Continua amanhã)