O GLOBO
A situação política “inusitada” criada pela presença do presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, na embaixada brasileira en Tegucigalpa, numa trama urdida pelo protoditador venezuelano Hugo Chávez que teve a conivência do governo brasileiro, como acusa o governo provisório hondurenho, ou a aceitação de um fato consumado, como alega o Itamaraty, tem questões colaterais que confundem o quadro e impedem uma análise desapaixonada.
A primeira é o protagonismo de Chávez em todos os episódios, a começar pelas cédulas do referendo pela Constituinte, confeccionadas em Caracas, até a operação de retorno de Zelaya ao país. Outro ponto polêmico é o exílio do presidente deposto, com o detalhe sensacionalista de ter sido colocado em um avião no meio da noite, de pijamas e sob a mira de fuzis, e mandado para a Costa Rica.
Parece estar havendo um consenso sobre o episódio entre os especialistas: o processo de deposição de Zelaya obedeceu aos princípios constitucionais, o que não aconteceu no caso do exílio.
Um estudo do advogado paulista Lionel Zaclis, publicado no site Consultor Jurídico e já referido aqui na coluna de ontem, acompanhou todo o processo de destituição, a partir da Constituição, que prevê: 1. A mera tentativa, por parte de todo e qualquer servidor público, de alterar o sistema de eleição do presidente da República implica imediata perda do cargo (artigo 239 e alínea); 2. São intangíveis as disposições constitucionais concernentes ao período presidencial e à proibição de que alguém seja presidente da República por mais de um mandato (art. 374).
No caso de Honduras, foram os seguintes os fatos, de acordo com o advogado Lionel Zaclis: — O presidente da República baixou um decreto propondo a realização de uma consulta sobre a convocação de uma assembleia constituinte, sendo público e notório o propósito de alterar a cláusula pétrea que proíbe um novo mandato; — O presidente da República não obedeceu à decisão do juiz competente, confirmada em segunda instância, que suspendeu a execução do decreto; — O presidente da República destituiu o chefe do Estado Maior das Forças Armadas, no que foi desautorizado pela Suprema Corte; — A Suprema Corte acolheu a denúncia formulada pelo Ministério Público, decretando a prisão preventiva do presidente da República; — Com a vacância do cargo, este foi preenchido pelo presidente do Congresso Nacional, de acordo com o disposto no artigo 242 da Constituição; — Houve respeito ao princípio do devido processo legal, pelo menos quanto ao seu conteúdo mínimo (contraditório, juiz natural, motivação das decisões, prova lícita, etc).
Segundo o advogado Zaclis, “é certo que as Forças Armadas, ao executarem o mandado de prisão, extrapolaram os limites aos quais se deviam circunscrever, ao expulsarem do país o presidente Zelaya”.
Essa atitude também fere a Constituição hondurenha, que, no seu artigo 102, diz que nenhum hondurenho poderá ser expatriado nem entregue pelas autoridades para um Estado estrangeiro”.
No entanto, diz Zaclis, “embora esse excesso configure uma nítida e inadmissível ilegalidade, não tem, à evidência, o condão de contaminar o processo constitucional da substituição presidencial, de modo a convertê-lo num “golpe de Estado”.
A conclusão semelhante chegou uma agência independente que analisou a questão a pedido da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, que diz que nem o exílio nem a volta de Zelaya ao poder tem respaldo legal. A solução seria entregá-lo à Justiça hondurenha, para que seja julgado pelos crimes de que é acusado. Essa posição também foi defendida em editorial do “Wall Street Journal”.
Essa constitucionalidade da destituição de Zelaya é contestada pelos que compartilham da visão de que a verdadeira democracia deve ser exercida pelo “poder constituinte” do povo, que a “democracia burguesa” neutraliza com as diversas intermediações, seja do Congresso, seja das várias instâncias do Poder Judiciário.
Para o filósofo italiano Antonio Negri, autor do livro “Poder constituinte”, que o próprio Chávez anuncia como um de seus orientadores ideológicos, “a divisão de poderes e o controle recíproco dos órgãos de Estado, a generalização e a formalização dos processos administrativos consolidam e fixam esse sistema de neutralização do poder constituinte”.
O deputado do PSOL Chico Alencar, que, embora oposicionista, apoia a ação do Itamaraty nesse caso, lembra que também o sociólogo Boaventura de Sousa Santos defende um processo plebiscitário e eleitoral, que chama de “democracia de alta intensidade”, “com ampliação da participação popular e empoderamento de setores marginalizados, o que sempre provoca violenta reação conservadora”.
Para Chico Alencar, “os sistemas políticos tradicionais de ‘nuestra America’ impedem que as maiorias sociais se traduzam em maiorias políticas”.
Zelaya, por ser originário desse esquema, estava cometendo o “crime de traição de classe”.
O sociólogo Nelson Paes Leme considera que a maneira como o presidente eleito Manuel Zelaya foi exilado se configura em uma quebra das regras democráticas tão grave quanto as posições bolivarianas de perenização do poder por via da convocação extemporânea do poder constituinte.
E lembra o que chama de “outro conceito pétreo das democracias modernas, que é a exigência da alternância de poder como dado indispensável para a estabilidade democrática e para o pleno exercício da representação, cláusula essa que, a toda evidência, fica prejudicada pelo apelidado ‘golpe constitucional’ da convocação extemporânea e frequente do plebiscito por quem já detém o poder”. (Continua amanhã)
E-mail para esta coluna: merval@oglobo.com.br
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