Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 26, 2009

Aonde a Gente Vai, Papai?, de Jean-Louis Fournier

Quando a natureza pega pesado

O relato bem-humorado e terno de um pai de duas crianças deficientes


Jerônimo Teixeira

Eric Fougere/Corbis/Latinstock
DEBOCHE DO PRÓPRIO NARIZ
Fournier: filhos comparados ao E.T.

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O título Aonde a Gente Vai, Papai? (tradução de Marcelo Jacques de Moraes; Intrínseca; 160 páginas; 19,90 reais) vem de uma espécie de bordão de Thomas, o filho mais novo do autor, o humorista e diretor de televisão da emissora francesa TF1 Jean-Louis Fournier, 71 anos. Era a pergunta que o garoto, aos 10 anos, fazia repetidas vezes sempre que andava de carro. Thomas nasceu com deficiências físicas e mentais graves - tem problemas de locomoção e nunca aprendeu a ler ou contar. Seu irmão mais velho, Mathieu, que tivera os mesmos problemas, acabou morrendo aos 15 anos, depois de uma cirurgia para corrigir uma escoliose. Com 500 000 exemplares vendidos na França, o livro é um relato honesto e desassombrado da experiência de um pai que teve dois filhos deficientes ("Comigo, a natureza jogou pesado", diz). O tom às vezes sarcástico de Fournier pode chocar: ele compara os filhos ao E.T. e fantasia deixá-los dentro da jaula dos tigres em uma visita ao zoológico. É privilégio do pai, afirma Fournier, debochar dos rebentos, como Cyrano de Bergerac debochava do próprio nariz. O humor negro não exclui o sentimento: como qualquer pai falando dos filhos - deficientes ou não -, Fournier tem momentos ternos e sentimentais.



LIVROS

Trecho de Aonde a Gente Vai, Papai?,
de Jean-Louis Fournier

Querido Mathieu,
Querido Thomas,

Quando vocês eram pequenos, tive algumas vezes, nos Natais, a tentação de lhes dar um livro. Um Tintim, por exemplo. Poderíamos ter falado dele juntos. Conheço bem Tintim, li todos, várias vezes.

Nunca fiz isso, não valia a pena, vocês não sabiam ler. Vocês nunca saberiam ler. Até o fim, seus presentes de Natal seriam cubos ou carrinhos...

Agora que Mathieu se foi, para buscar sua bola num lugar em que não poderemos mais ajudá-lo a pegá-la, agora que Thomas, que continua na Terra, está com a cabeça cada vez mais nas nuvens, vou lhes dar, mesmo assim, um livro. Um livro que escrevi para vocês. Para que não sejam esquecidos, para que não sejam apenas uma foto numa carteira de invalidez. Para escrever o que eu nunca disse. Talvez os remorsos. Não fui um pai muito bom. Com frequência, não conseguia suportá-los, era difícil amar vocês. Com vocês, era preciso uma paciência de santo, e não sou um santo.

Para lhes dizer que lamento que não tenhamos podido ser felizes juntos, e talvez, também, para pedir desculpas por ter falhado com vocês. Não tivemos sorte, vocês e nós. Caiu do céu, isso é que é azar.

Vou parar de me queixar.

Quando se fala de crianças deficientes, assume- se um ar circunspecto, como quando se fala de uma catástrofe. Ao menos uma vez eu gostaria de falar de vocês com um sorriso. Vocês me fizeram rir, nem sempre involuntariamente. Graças a vocês, tive algumas vantagens em relação aos pais de crianças normais. Não me preocupei com seus estudos nem com sua orientação profissional. Não tivemos de hesitar entre uma carreira científica ou literária. Nem de nos inquietar quanto ao que vocês fariam mais tarde - soubemos rapidamente o que seria: nada. E principalmente, durante muitos anos, tive o benefício da isenção de impostos sobre veículos. Graças a vocês, pude andar em enormes carros americanos.

Depois que entra no Camaro, Thomas, dez anos, repete, como sempre: "Aonde a gente vai, papai?"

No início, respondo: "Vamos para casa."

Um minuto depois, com a mesma candura, ele faz de novo a mesma pergunta, sem ênfase. No décimo "Aonde a gente vai, papai?", não respondo mais...

Não sei mais muito bem aonde vamos, meu pobre Thomas.

Vamos por água abaixo. Vamos direto para o paredão.

Um filho deficiente, depois dois. Por que não três...

Eu não esperava por isso.

Aonde a gente vai, papai?

Vamos pegar a estrada, na contramão.

Vamos para o Alasca. Vamos acariciar os ursos.

Vamos nos fazer devorar.

Vamos pegar cogumelos. Vamos colher Amanita phalloides para fazer uma boa omelete.

Vamos à piscina, vamos mergulhar do grande trampolim, em um tanque em que não há água.

Vamos para o mar. Vamos para o monte Saint- Michel. Vamos passear na areia movediça. Vamos nos atolar. Vamos para o inferno.

Imperturbável, Thomas continua: "Aonde a gente vai, papai?" Talvez ele bata o próprio recorde. Depois da centésima vez, a coisa fica realmente irresistível. Com ele, a gente não se entedia, Thomas é o rei do bordão.

Aqueles que nunca tiveram medo de ter um filho que não fosse normal que levantem a mão.

Ninguém levantou.

Todo mundo pensa nisso como pensa num terremoto, como pensa no fim do mundo - algo que só acontece uma vez.

Eu tive dois fins do mundo.

Quando olhamos para um recém-nascido, ficamos contemplativos. Como é benfeito. Olhamos para as mãos, contamos os dedos minúsculos, percebemos que há cinco em cada mão, o mesmo em cada pé. Ficamos siderados - nem quatro nem seis, não, só cinco. É, a cada vez, um milagre. Isso sem falar no que há lá dentro, ainda mais complicado.

Fazer um filho é correr um risco... Nem sempre ganhamos. No entanto, continuamos a fazê-los.

A cada segundo, sobre a Terra, uma mulher dá à luz um fi lho... Definitivamente, é preciso encontrá-la e lhe dizer que pare, acrescentou o humorista. Ontem, fomos ao convento de Abbeville apresentar Mathieu à tia Madeleine, que é religiosa carmelita.

Fomos recebidos no locutório, um pequeno cômodo caiado de branco. Na parede do fundo havia uma abertura fechada por uma cortina pesada. Não era vermelha, como no teatro de Guignol - era negra. Ouvimos uma voz que saía detrás da cortina, que disse: "Bom dia, crianças."

Era tia Madeleine. Ela é enclausurada, não tem permissão de nos ver. Conversamos um pouco com ela, que depois quis ver Mathieu. Pediu que puséssemos o moisés diante da abertura e que, em seguida, nos virássemos para a parede. As irmãs enclausuradas têm o direito de ver as crianças pequenas, não as grandes. Ela então chamou as religiosas para admirar seu sobrinho-neto. Ouvimos o farfalhar dos hábitos, tagarelices e risos, depois o ruído da cortina que se abriu. Houve então um concerto de louvores, de cosquinhas para cá e para lá na divina criança. "Ele é uma gracinha! Olhe, Madre, está sorrindo para nós, parece um anjinho, um pequeno Jesus...! Por pouco não disseram que parecia uma criança precoce.

Para as religiosas, as crianças são, acima de tudo, criaturas do bom Deus; são, portanto, perfeitas. Tudo o que Deus faz é perfeito. Elas não querem ver os defeitos. Além disso, trata-se do sobrinho- neto da Madre Superiora. Em certo momento, tive a tentação de me virar para dizer-lhes que não precisavam exagerar.

Não fiz isso, ainda bem.

Ao menos uma vez o pobre Mathieu ouvia elogios...


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