Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, setembro 21, 2009

Pressão tecnológica JOÃO UBALDO RIBEIRO

O GLOBO


-Já estava achando que você não vinha mais, fiquei preocupado — disse eu, olhando para o relógio. — Se eu tivesse celular, teria telefonado para sua casa.


— Se você tivesse celular, talvez eu não me desse com você — respondeu ele. — Você sabe disso. Lá em casa, eu sou o último baluarte.


Aliás, no mundo! Eu tenho a impressão de que, dentro de no máximo uns vinte anos, os meninos já vão nascer com um celular na orelha, estamos caminhando para isso.


— Bem, nascer com celular, não digo. Mas não acho impossível que, dentro de menos tempo, possa se fazer um implante logo no nascimento.


Antigamente não era obrigatório furar as orelhas das meninas? Vai ser a mesma coisa.


— É verdade, um implante, claro.


Me contaram que, na Europa, já tem.


O cara liga e desliga o celular com uma sacudidela de pescoço, como quem está tentando espantar uma mosca com a cabeça. E o microfone é embutido no gogó, debaixo da pele, é minúsculo, ninguém percebe. O sujeito não carrega mais aparelho nenhum na mão, fica pela rua, aparentemente conversando com o vento. Eu acho que não resisto a um negócio desses.


Se eu saísse aqui pela rua e me deparasse com uma porção de gente falando assim, ia pedir para ser internado.


Aliás, tenho pensado muito nisso, você sabe? Um bom asilo, sem nem telefone comum, quanto mais celular.


— Você não está radicalizando, não? Eu não tenho celular, nem quero ter, mas também não faço campanha contra ele, quem quiser que tenha e use.


— Celular é uma coleira, essa desgraça é uma coleira eletrônica! Você precisa ver o Toninho. Até andando no calçadão, ele tem de atender o celular, a mulher dele exige um relatório a cada quinze minutos. É um espetáculo patético, ele com aquela cara de choro, contando a ela que acaba de chegar ao Posto 6 e continua caminhando.


— Mas você não tem esse problema.


— Não me afeta diretamente, mas indiretamente me afeta. Todo esse negócio de celular me afeta.


Aliás, como me afeta! Lá em casa tem mais celular do que gente, é um inferno! Eu vou pelo corredor distraído e aí explode uma sirene daquelas de polícia de cinema — oí, oí, oiiiiií — é um susto horrível.


E não é nada, é só um dos toques que alguém acha engraçadinho botar no celular. De vez em quando, eu acho que vou ter um enfarte, não me acostumo nunca. E cada dia o som fica mais alto, daqui a pouco é um trio elétrico em cada bolso, eu acho que não sobrevivo. E as fotos, as fotos! Eu pergunto: por que um telefone tem que tirar fotos? Por quê? — Bem, de fato, se, há alguns anos, me dissessem que telefone tirava foto, eu ia achar estranho.


Mas agora é normal.


— Não é normal! Não é normal a pessoa fotografar o tempo todo! É falando no celular ou fotografando, falando ou fotografando, falando ou fotografando.


Você acha isso normal? Agora, antes de fechar a porta do banheiro, eu passo uma revista no ambiente, para ver se não tem um celular na bancada da pia ou malocado em algum canto, seguro morreu de velho. Sei lá o que algum dos muitos malucos de minha família pode ter resolvido aprontar, com uma máquina diabólica dessas. Já deve haver umas com controle remoto. O cara esconde o bicho no banheiro, você vai lá — e olha você na internet no dia seguinte, sentadão no trono. E, o que é pior, com vários comentários de internautas sobre seu estilo de usar o banheiro, notas para sua cueca e assim por diante. Não, não há nada de normal nesse negócio todo! — Tudo bem, mas, com tantas cautelas, acho que você não tem motivo para preocupação.


— Isso é o que você pensa! Você sabe o que minha mulher resolveu fazer agora? Ela leu não sei onde sobre um cara que está fazendo isso e resolveu fazer a mesma coisa, ela acha interessantíssimo. Todo dia, ela tira uma foto da cara da gente, todo santo dia. Diz ela que é para acompanhar nosso envelhecimento.


— Mas não basta uma foto em cada réveillon? — Eu também argumentei isso, mas ela disse que de réveillon todo mundo tem, uma todo dia é que é realmente inovador No primeiro dia, eu me recusei a posar, mas aí ela disse que ia tirar a foto na marra e, como eu, quando estou em casa, às vezes tiro a ponte móvel, achei que meu banguela look não ficava bem nessas fotos. Mas você já imaginou que coisa mais sinistra, a gente sentar para olhar as imagens da nossa decadência progressiva? — Realmente, talvez seja um pouco mórbido, mas não deixa de ser interessante.


— Para alguns. Para mim, não. Já tomei uma decisão e pode até botar no jornal. Eu me rendo uma vez aos novos tempos e para isso uso também uma palavra que pertence a eles: eu vou me deletar, é isso que eu vou fazer.


— Não, não entendi, você não vai fazer uma coisa dessas, é brincadeira.


— Vou, sim. Já me explicaram que, quando o camarada deleta alguma coisa no computador, essa coisa não é de fato apagada, fica sempre lá, de alguma forma. Então eu vou me deletar.


— Você quer dizer que vai sumir? — Em linguagem antiga, é.


— E como é que os amigos vão encontrar você? — Me procurem no Gúgol. Não é assim que se diz?

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