FOLHA DE S. PAULO /
Vi que a calçada estava ocupada por soldados do Exército, com fuzis e farda de campanha
DUAS SEMANAS atrás, fez 55 anos que o presidente Getúlio Vargas deu um tiro no peito. Eu morava perto do palácio do Catete, ali na rua Buarque de Macedo, 56, na pensão de dona Hortência.
Na verdade, morava numa vaga de um quarto da pensão, em companhia de dois amigos: Oliveira Bastos e José Carlos Oliveira. Dos três, o único que tinha emprego fixo era eu, na revista do Instituto de Aposentadoria dos Comerciários (IAPC). Bastos e Carlinhos viviam de biscates, escrevendo uma matéria aqui outra ali para algum jornal ou revista, de modo que, com frequência, quem arcava com o aluguel era eu.
A política não ocupava o centro de nossas preocupações, voltadas para a literatura e a arte. Eu andava para cima e para baixo com a "Histoire du Surréalisme", de Maurice Nadeau, que lia e anotava, fosse num banco da Cinelândia ou num bonde que me levava a passeio pela praia do Flamengo. Às vezes íamos à casa de Mário Pedrosa, em Ipanema, filar o almoço ou o jantar e jogar conversa fora.
Mário, sim, preocupava-se com questões políticas, especialmente naquele momento quando a crise institucional parecia caminhar para o desfecho. A tensão crescera definitivamente, quando, num atentado contra Carlos Lacerda, em frente a seu edifício, na rua Toneleros, morreu um oficial da Aeronáutica, que lhe servia de guarda-costas.
Esse atentado justificou a reação de oficiais da Aeronáutica que, por conta própria, instalaram, na base aérea do Galeão, um órgão investigatório e policial para apurar e prender os responsáveis. Esse órgão ficaria conhecido como a "República do Galeão", já que, de fato, tornara-se um poder paralelo ao poder legal do governo Vargas.A campanha contra ele começara no dia mesmo em que se apresentou candidato à presidência da República, nas eleições de 1950, depois dos anos que passara em sua fazenda em Itu, no Rio Grande do Sul, após ser deposto em 1945. Lacerda, na "Tribuna da Imprensa", jornal que havia sido criado para combater o getulismo, chegou a escrever: "O senhor Getúlio Vargas não pode ser candidato; se candidato, não pode ser eleito; se eleito, faremos uma revolução para derrubá-lo".
De fato, Getúlio candidatou-se, elegeu-se e tomou posse na Presidência do país. Lacerda, por sua vez, não desistiu das ameaças que fizera e desencadeou contra ele uma guerra sem tréguas, com acusações de toda ordem. Foi essa campanha difamatória que levou o chefe da guarda pessoal de Vargas, Gregório Fortunato, a aliciar, por conta própria, alguns pistoleiros para dar cabo do jornalista. Essa iniciativa desastrada, tendo partido de dentro do palácio presidencial, pôs Getúlio em situação indefensável.
Na noite do dia 24 de agosto de 1954, no auge da crise, ele se reuniu com seu ministério, na tentativa de buscar uma saída, mas percebeu, pela atitude da quase totalidade dos ministros, que a sua queda era então inevitável.
Nosso quarto na Buarque de Macedo dava para a rua. Lá pelas quatro da madrugada, acordei com uns barulhos inusitados e, chegando à janela, vi que a calçada estava ocupada por soldados do Exército, com fuzis e farda de campanha. Só então me dei conta de que algo de muito grave estava para acontecer. Vesti-me às pressas e me dirigi para o palácio do Catete, a umas poucas quadras dali. À frente do palácio, havia soldados armados, que impediam a aproximação de pessoas. Carros oficiais chegavam, trazendo políticos e altas patentes militares. Ninguém sabia de fato o que se passava dentro do palácio, mas que a situação era grave, não havia dúvida.
Eu, como muitas outras pessoas, amanheci em frente ao palácio. Logo cedo um bar, que ficava quase em frente, abriu as portas e, assim, pude matar a fome, com uma média e pão com manteiga. O assunto era naturalmente a crise política e todos que ali estavam mostravam-se a favor da deposição do presidente. Eu também, o que era natural, uma vez que a campanha de Lacerda surtira efeito: de minha sogra, que era católica, gaúcha e getulista, ao partido comunista, todos estavam contra Vargas.
Às 8h20 da manhã, pelo rádio do bar, o Repórter Esso, que se dizia testemunha ocular da história, noticiou: "O presidente Getúlio Vargas acaba de suicidar-se com um tiro no coração". Fez-se silêncio até que um sujeito gritou: "Mataram o Velhinho!". Subitamente revoltados, todos passaram a bradar contra o golpista Lacerda.
Essa virada parece ter ocorrido por todo o país, pois logo a multidão tomou as ruas, indignada com a morte de um presidente que, de fato, não roubara nem enriquecer
Entrevista:O Estado inteligente
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