Uma cidade sem Deus Gomorra, livro e filme, traz um panorama devastador
De início, não é fácil seguir o que está acontecendo em Gomorra (Itália, 2008), que estréia nesta sexta-feira no país: gângsteres são executados por amigos durante uma sessão de bronzeamento; dois homens de meia-idade participam de um leilão para a produção de peças de alta-costura em sua fabriqueta; um senhor de ar próspero e seu jovem assistente inspecionam uma pedreira abandonada; bandos vendem drogas num conjunto habitacional decrépito; o filho de uma dona de armazém almeja virar soldadinho do crime, e é testado levando tiros no peito, com um velho colete à prova de balas. Aos poucos, entende-se o que liga esses personagens e suas histórias. Essa é a vida na periferia de Nápoles e nas miseráveis cidades ao norte dela – e toda essa vida é inescapavelmente tocada pela Camorra, a superorganização criminosa sediada ali, na região italiana da Campânia, mas que se faz presente em todo o planeta, de maneiras às vezes insuspeitadas. Deslindar essa teia foi o formidável trabalho a que se dedicou o jornalista Roberto Saviano no livro–reportagem também intitulado Gomorra (tradução de Elaine Niccolai; Bertrand Brasil; 350 páginas; 39 reais), que chega às livrarias neste dia 15, e no qual o filme do diretor Matteo Garrone se baseia. Aos 29 anos, Saviano está pagando um preço impossível pelo destemor, pela meticulosidade de sua apuração e pela prosa fluente, que fizeram de Gomorra um best-seller. É guardado 24 horas por dia por um destacamento policial e perdeu tudo o que se assemelhe à normalidade. Desde a publicação, há dois anos, a Camorra o jurara de morte. Com o lançamento do filme, os clãs criminosos decidiram que a sentença deve ser cumprida quanto antes. Saviano cogita deixar a Itália. Seu próprio livro, contudo, prova que a Camorra está em toda parte.
Há alguns anos, a Camorra era uma organização provinciana, eclipsada em alcance e celebridade pela Cosa Nostra, a máfia siciliana. Mas a Operação Mãos Limpas caiu pesado sobre a Cosa Nostra e desbaratou muitas de suas atividades. Nesse vácuo, a Camorra floresceu, apoiada nas infinitas oportunidades proporcionadas pelo gigantesco porto de Nápoles. Floresceu à sombra: ao contrário dos sicilianos, os camorristas não dão a mínima para tradição e códigos de conduta, que muito contribuíram para a mitologia em torno da Cosa Nostra. E, ao contrário de outros grupos similares na selvageria, como os narcotraficantes cariocas, não querem saber de "comunidade" nem de festa – a única coisa que interessa à Camorra é o lucro, em margens astronômicas. Os camorristas seguem uma lógica capitalista tão moderna e avançada que deram forma a um pesadelo: tornaram-se indispensáveis à economia legítima, que muitas vezes nem imagina estar-se valendo dos seus serviços para progredir. Em outros casos, imagina, sim. Mas finge que não. O traçado que Saviano faz das ramificações da Camorra é aterrador. O "sistema", como ela gosta de se chamar, está na vanguarda de todo tipo de negócio ilícito, como extorsão, prostituição e tráfico de entorpecentes e de armas. Controla quase a totalidade das drogas que entram na Europa (até a Cosa Nostra já compra dela) e é dona de parte dos arsenais militares que ficaram a descoberto com o esfacelamento da União Soviética. Neles, seu principal interesse são os fuzis AK-47, que, por ser baratos e confiabilíssimos, são a arma preferida do terrorismo e da guerrilha em todo o mundo. A Camorra mantém os estoques nos países de origem e os movimenta conforme a encomenda, à moda de uma Amazon.com da venda ilegal de armamentos. Mais assustador ainda é quão fundo a Camorra se infiltrou em setores que ninguém suporia associados ao crime organizado. As grandes grifes italianas de roupas produzem suas peças exclusivas nas fabriquetas da área de Nápoles. Como estas só recebem após a entrega do produto pronto, dependem do financiamento da Camorra para entrar na disputa pelas encomendas. Os artesãos são operários que vivem de seu trabalho exímio (e mal pago, e sem nenhum benefício). Mas, em última análise, são empregados da Camorra, como o livro mostra num episódio de partir o coração, dedicado ao alfaiate Pasquale – que entra em depressão ao ver Angelina Jolie, no tapete vermelho do Oscar, vestindo o terninho branco que ele confeccionou anonimamente (no filme, o conjunto de Angelina vira um vestido para Scarlett Johansson). As peças excedentes, idênticas às que serão vendidas nas lojas das grifes, são distribuídas pela Camorra com o silêncio cúmplice das marcas. Isso faz com que elas cheguem, como "falsificações", a consumidores que de outra forma não poderiam adquiri-las, ampliando a fama das marcas sem prejuízo de sua imagem de qualidade. Da mesma forma, a Camorra se tornou necessária à distribuição de "falsificações genuínas" de eletroeletrônicos, à venda de alimentos para atacadistas, ou ao sistema de crédito financeiro – e por aí afora. Onde os camorristas plantam suas bandeiras, porém, a morte chega junto. Sua entrada no setor do saneamento urbano fez disparar a incidência de câncer em certos locais, já que o lixo tóxico é despejado sem proteção em aterros clandestinos (como a pedreira que o senhor próspero inspeciona no filme). Seu sistema de tráfico de drogas é outro exemplo eloqüente do comércio selvagem que a organização pratica. Todo ele foi movido para áreas residenciais densas e de desemprego rampante, como as cidades-satélite de Secondigliano e Scampia. O negócio fica "amigável" às pessoas que não querem andar por guetos, e os moradores viram pequenos investidores do tráfico: entregam seu dinheirinho a camorristas e levam parte do lucro. Mas, claro, ficam sujeitos a execuções sumárias ou a ser pegos no fogo cruzado das freqüentes disputas entre clãs rivais. Com sua indiferença brutal a tudo o que não seja lucro – e está-se falando aqui em faturamentos da ordem de 500 000 euros diários para cada clã –, os camorristas testam novas misturas de drogas em viciados. Se eles passam mal ou morrem, é sinal de que o "corte" não está no ponto. Gomorra, o livro, alterna-se entre a vida sobressaltada das pessoas miúdas tocadas pela Camorra e a visão do macronegócio. Gomorra, o filme, fica quase que só com o universo das pessoas pobres e pouco instruídas que, mais cedo ou mais tarde, formarão algum laço com a Camorra. Ao fim de suas duas horas, tem-se uma idéia de como é viver sob um poder invisível, mas onisciente e onipresente – um poder quase divino, e totalmente maligno. Livro e filme transbordam também a indignação de Saviano com o que ele julgava ser um tumor e descobriu constituir um câncer em estágio avançado de metástase. Escritor versado e homem de coragem singular, ele compartilha agora com os personagens que descreveu a asfixia de viver sob uma sentença de morte.
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