BASTA ASSISTIR a uma palestra de um diretor do Banco Central (por exemplo, o sr. Mario Torós, no Rio, em novembro, na conferência de econometria no Impa) para compreender que o banco só pensa naquilo: inflação. O resto não interessa. Em plena crise financeira internacional, o BC do Brasil está mais dogmático do que o Bundesbank (Banco Central alemão). A inflação é a meta; o instrumento é a taxa de juros.
A manutenção da taxa de juros no alto nível atual se explica basicamente por essa aderência ao modelo de "inflation targeting", que vem tendo grande sucesso no Brasil -em contraste com alguns outros países emergentes- talvez mesmo em face dessa disciplina com que o BC atua.
Não adianta pensar em desvalorizações ou recessões. Na verdade, para combater as desvalorizações, talvez fosse necessário subir a taxa de juros para 100% ao ano. Mesmo sem o modelo de inflação, alguém teria coragem de fazer isso? Por outro lado, para estimular a economia, haveria necessidade de queda forte nos juros para a faixa de um dígito. Mas isso não interessa. Só a inflação interessa. E o Banco Central crê firmemente que é assim que está de fato contribuindo para estabilizar a economia.
Simplificadamente, a fixação da taxa de juros se baseia num modelo de metas inflacionárias em que a inflação depende de certas variáveis: tamanho do hiato do produto (diferença entre o nível real e potencial do PIB), inércia inflacionária, variações cambiais etc. Examinando as variáveis, tínhamos pelo menos dois itens "pressionando" a inflação -a redução do hiato do produto pelo maior crescimento do PIB e a desvalorização do câmbio da ordem de 50%. Essa análise mostra que seria impossível baixar os juros, tendo em mente as metas inflacionárias -e talvez houvesse necessidade de subir os juros.
Parece lógico, porém, que outras variáveis passaram a ser levadas em conta a partir de agora no modelo inflacionário -a recessão mundial e os preços de commodities. É provável que o "peso" dessas variáveis fosse pequeno anteriormente, mas o BC certamente incluiu o PIB mundial e as commodities no seu modelo econométrico inflacionário. Houve, assim, uma compensação das pressões altistas pela alta mencionadas no parágrafo anterior, justificando a manutenção das taxas de juros.
O que merece ser discutido diante da crise global é se as novas pressões baixistas sobre a inflação brasileira não estão destruindo a previsibilidade do modelo do Banco Central.
Em outras palavras, diante da perspectiva de recessão e deflação internacional, incluindo quedas fortes em preços básicos, tais como petróleo, soja, café e minério de ferro, o Brasil poderá vir a ter uma surpresa "deflacionária", a despeito do crescimento do PIB no último trimestre e das desvalorizações do câmbio. É isso que ainda pode estar fora do telescópio do BC, afetando a elegância do modelo de metas inflacionárias.
Ou seja: está tudo muito bem com a dedicação ferrenha e integral ao modelo de metas inflacionárias -talvez uma dedicação sem igual no mundo de hoje. Realmente, quem diria, um novo Bundesbank, o qual não se abala nem sequer com uma enorme crise financeira mundial que pode levar à depressão e à deflação vários países.
Mas essa dedicação requer -ou vai requerer- um certo mea-culpa se, mais adiante, o Banco Central descobrir que o seu modelo de inflação não foi bem adaptado diante da nova realidade internacional, em que as variáveis externas são mais fundamentais do que as variáveis internas na formação da inflação brasileira.
Portanto, é elogiável que o Banco Central tenha essa atitude rígida de coerência com o regime monetário brasileiro atual, mantendo as taxas de juros onde estão. Mas o BC precisa ficar atento à evolução da própria inflação nos próximos meses, a qual pode se descolar completamente das previsões altistas implícitas nos modelos que enfatizavam o hiato do PIB e o câmbio. Então aí deverá pensar em baixar os juros, mas sempre em consonância com suas crenças no "inflation targeting".
ANTONIO CARLOS LEMGRUBER, 61, economista, é ex-presidente do Banco Central do Brasil.