A frase “ os números não mentem” nunca deixou de ser verdadeira. Contudo, os números só existem na cabeça do homem, e o homem mente. Ou seja, é fato que os números não mentem, mas há grande fartura de gente que os emprega para mentir.
E os números costumam intimidar quem os escuta, principalmente aqueles, que imagino maioria, em que a matemática ressuscita o terror experimentado nos bancos escolares.
A precisão do número é mortal e dá sempre a impressão de que quem os utiliza, numa argumentação qualquer, tem razão. Isso cria situações curiosas, porque, em certos casos, quanto mais “preciso” o número, mais suspeito ele é. Estatísticas como “37,23 por cento das crianças de tal cidade consideram a freqüência à escola uma perda de tempo” se originam de dados que não podem ser apresentados dessa forma, principalmente porque há neles uma margem de erro que varia de caso a caso. Desconfiar, pois, de números tão certinhos assim.
Desconfiar também de comparações aparentemente inatacáveis, como, para escolher um exemplo fácil, a criminalidade de Nova York com a do Rio ou São Paulo. De primeira assim, o freguês fica inclinado a crer que, olhando as estatísticas de Nova York e olhando as nossas, talvez estejamos até melhor, numa categoria ou outra. Certo? Errado, claro. Eu mesmo já soube de casos de gente que teve seu carro roubado e não se deu ao trabalho de dar parte à polícia. Pode ser até mentira, mas terá seu fundo de verdade.
Um grande número de vítimas de assalto nas grandes cidades brasileiras não dá queixa na polícia, até porque é ameaçada de represálias por parte dos assaltantes, se vier a cometer essa bobagem, aliás inútil na maior parte dos casos. Por essas e muitas outras, é freqüentemente um exercício altamente besteirógeno (gerador de besteiras) a comparação entre estatísticas estrangeiras e as nossas, porque, nas estatísticas, há bastante mais que números.
Uma coisa interessante, por exemplo, aconteceu recentemente.
Viu-se alardeado por todo o Brasil um esplêndido crescimento da classe média, resultado da ação do governo, evidência de que está havendo redistribuição de renda, de que o padrão de vida geral está melhorando.
Certo, certo? Errado, claro.
Não faz também muito tempo, o PT, se não me engano, chegou a sustentar que 600 dólares por mês eram o mínimo para um trabalhador sustentar a família. Mas agora mudaram de idéia e quem ganha 600 dólares não pertence mais ao nível de salário mínimo, mas à classe média.
A classe média, novamente se não me falham os escassos neurônios, é agora do pessoal entre 500 e 2.500 dólares. Notaram a inteligência, sentiram como os números não mentem? Bastou alterar uma bobagem nas definições para os números a refletirem sem equívoco. A classe média aumentou e acabouse.
Quanta gente ia morrer sem ter esse gostinho, se não fosse pela visão social do governo? Lembro o presidente da República saindo garboso do hospital paulista em que acabara de resolver um pequeno problema de saúde e dizendo que recebera o tratamento que qualquer outro cidadão brasileiro receberia. Bem antes, ele já comentara que a saúde pública no Brasil se aproxima da perfeição, de maneira que, sendo ele presidente e eu apenas um dos pagantes, não vou desmentir o homem. Vou até espalhar isso, na minha próxima estada em Itaparica. O pessoal vai gostar de saber que a cirurgia que o médico disse que era urgente, mas só foi marcada para meados do próximo ano, pode ser feita logo, no Albert Einstein. Basta pedir ao SUS a requisição, apresentá-la na repartição pública adequada e receber passagem de ida e volta a São Paulo, com direito a internação e acompanhante.
Eu sei que todo mundo devia ter conhecimento disso, mas a imprensa, como sempre, sabota e a informação não é dada.
Também padeço de torturante confusão mental, quando por acaso assisto a algum noticiário de televisão.
É comum que, no mesmo programa, se afirme indiretamente que a economia está ótima e que o emprego aumentou, para logo em seguida (ou melhor, na seqüência — pois que agora só se fala assim, notadamente entre os narradores de futebol, para os quais nada acontece depois, mas na seqüência) abordarem perspectivas sinistras, que os apresentadores descrevem com os semblantes adequadamente compungidos. Fica sob nossa responsabilidade resolver o que é verdade e o que é falso.
E por acaso a lembrança dos narradores de futebol vem a calhar para o assunto de que estou tratando.
Lembro as primeiras transmissões de jogos de futebol pela tevê, necessariamente ao vivo, pois não existia videoteipe. Os narradores das rádios tiveram de adaptar-se, deve ter sido penoso. Muita gente, inclusive meu pai, baixava todo o volume da tevê e ligava um rádio, só para pegar alguns narradores que, ainda sem se dar conta de que agora o espectador estava vendo o que acontecia no estádio, prosseguiam floreando, enfeitando e puxando a brasa para o time de sua torcida, a ponto, por exemplo, de muitas vezes vermos jogadores dando pulinhos e esfregando uma perna machucada de leve, enquanto, pelo rádio, ele contorcia-se em dores no gramado.
Sim, há várias maneiras de ver a realidade, há até gente que acha que ela não passa de uma alucinação.
É uma boa convicção, que às vezes me tenta. E é mesmo muito difícil estabelecer o que de fato aconteceu. Quando o presidente soltou um palavrão na tevê, todo mundo o u viu. Contudo, ao ser transcrito para veiculação oficial, o palavrão virou “inaudível”. Todo mundo ouviu, mas é mentira. Foi inaudível, do mesmo jeito com que os escândalos envolvendo gente sua foram invisíveis para o presidente.
Qual o sentido que vão abolir agora, “na seqüência”? Faço um apelo que creio não ser só meu: dêem um fim logo no olfato, porque ninguém agüenta mais.
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
Arquivo do blog
-
▼
2008
(5781)
-
▼
dezembro
(390)
- Clipping 31/12/2008
- ROBERTO DAMATTA - O último dia: o tempo em três te...
- CLÓVIS ROSSI O exílio de Eliot Ness
- Democracia em construção Fernando Rodrigues
- DITADURA EM DECLÍNIO EDITORIAL FOLHA DE S. PAULO
- A sucessão sem partidos Villas-Bôas Corrêa
- ACABOU EM PORTUGAL EDITORIAL FOLHA DE S. PAULO
- FALTA DESTRAVAR O INVESTIMENTO EDITORIAL O ESTADO ...
- Diplomas cubanos O Estado de S. Paulo EDITORIAL,
- Gigolô da ignorância alheia por Ricardo Noblat
- Só pode ser alienação (Giulio Sanmartini)
- Clipping 30/12/2008
- GUERRA EM GAZA PIORA E CHEIRA MAL , de Nahum Sirotsky
- Celso Ming Os pinotes do petróleo
- Governo quer arrombar o cofre Vinicius Torres Freire
- "Falta austeridade para enfrentar a crise" Rubens ...
- Os grandes desafios de 2009 Maria Cristina Pinotti...
- LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA Socorrer quem?
- FERNANDO RODRIGUES Terceira via para 2010
- George Vidor É possível Publicado
- Dinheiro fácil O Estado de S. Paulo EDITORIAL,
- Ler é preciso Carlos Alberto Di Franco
- Pobres alunos, brancos e pobres... Sandra Cavalcanti
- Celso Ming Os jornais enfrentam o f...
- JOÃO UBALDO Admirável ano novo
- FERREIRA GULLAR Por falar em 1968
- DANUZA LEÃO Adeus, juventude
- VINICIUS TORRES FREIRE Os juros estão caindo e su...
- CLÓVIS ROSSI O horror e a ternura
- Defesa nacional Folha de S.Paulo EDITORIAL,
- Uma aventura cara O Estado de S. Paulo EDITORIAL,
- Cores de um retrato em preto-e-branco Gaudêncio T...
- Os desafios de 2009 Paulo Renato Souza
- Suely Caldas- Adeus ano velho - e o novo?
- A lógica que regerá 2009 Yoshiaki Nakano
- A economia Madoff Paul Krugman
- Gol contra Alberto Dines
- "Meu sonho é criar uma Nações Unidas Religiosa", d...
- Celso Ming Encolhimento do mundo rico
- Ruy Fabiano - A nova Guerra do Paraguai
- FERNANDO RODRIGUES Congresso humilhado
- Miriam Leitão Produto Obama
- UM ALERTA PARA AS CONTAS DO TESOURO EDITORIAL O ES...
- LEGALIZAÇÃO DE MORADIAS EDITORIAL O ESTADO DE S. P...
- O FUNDO NASCEU DESFIGURADO EDITORIAL O ESTADO DE S...
- MENOS INFLAÇÃO EDITORIAL O GLOBO
- MÉXICO EM GUERRA EDITORIAL O GLOBO
- ‘DESLOGANDO’ DO PREFEITO CESAR MAIA EDITORIAL JORN...
- Homenagem às Sumidades -Maria Helena Rubinato
- CELSO MING A crise como vantagem
- O bom humor natalino do presidente Villas-Bôas Corrêa
- Clipping 26/12/2008
- Pânicos infundados e desastres inesperados
- FERNANDO GABEIRA Quem diria, 2008
- MERCADO DE TRABALHO ENCOLHE EDITORIAL O ESTADO DE ...
- TRABALHO ESCRAVO EDITORIAL O ESTADO DE S. PAULO
- PIORA DA BALANÇA COMERCIAL EDITORIAL O ESTADO DE S...
- SÃO PAULO INVESTE MAIS EDITORIAL O ESTADO DE S. PAULO
- NO DEVIDO LUGAR EDITORIAL O GLOBO
- MIRIAM LEITÃO - Debate ocioso
- MERVAL PEREIRA - Crises cíclicas
- A vida sem bolhas Paul Krugman
- Só quem trabalha pode pagar o almoço José Nêumanne
- Lula continua surfando em marolas Rolf Kuntz
- Augusto Nunes O Brasil quer saber quem é essa gente
- Somos todos keynesianos MARTIN WOLF
- Mudança abrupta Folha de S.Paulo EDITORIAL,
- Bons negócios para Sarkozy O Estado de S. Paulo ED...
- MIRIAM LEITÃO - Times mistos
- DEMÉTRIO MAGNOLI O jogo dos reféns
- CARLOS ALBERTO SARDENBERG 2009 começa mal e . . .
- MERVAL PEREIRA - Dúvidas da crise
- NA ENCRUZILHADA ENTRE O CÉU E O INFERNO Nahum Siro...
- 11 vezes crise-Fernando Rodrigues,folha
- Clipping 24/12/2008
- Politicagem Merval Pereira
- CELSO MING Mais vitamina
- Míriam Leitão Natal secreto
- Dora Kramer A prova do retrovisor
- VEJA Carta ao Leitor
- MILLÔR
- Diogo Mainardi O ano da parábola
- Roberto Civita Sobre esquimós e larápios
- Eles não desistem
- Toyota breca na crise
- O coronel agora é dono do shopping
- Foco é ilusão burguesa
- A Semana Saúde De olho em benefícios
- Retrospectiva 2008 Economia
- Retrospectiva 2008 Brasil
- Retrospectiva 2008 -Internacional-De pernas para o ar
- Retrospectiva 2008 Inovações
- Retrospectiva 2008 Tecnologia
- Retrospectiva 2008 40 fatos
- Retrospectiva 2008 Memória
- Niall Ferguson 2009, o ano da Grande Repressão
- Bruce Scott Capitalismo não existe sem governo
- Jeffry Frieden Os Estados Unidos em seus dias de A...
- Zhiwu Chen Todo o poder ao consumidor
- Parag Khanna O gigante está vulnerável
-
▼
dezembro
(390)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA