Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 20, 2008

Bons lançamentos de história do Brasil

As luzes do passado

O gosto pela história cresce entre os leitores.
Três lançamentos – um clássico, um dicionário
e uma coletânea de testemunhos de época – vêm
satisfazer esse interesse renovado

VEJA TAMBÉM
Exclusivo on-line
Trechos
Historia do Brazil
Dicionário do Brasil Joanino
História Contada por Quem Viu

O cronista Ivan Lessa observou que a cada quinze anos o Brasil esquece o que aconteceu nos últimos quinze anos. A produção historiográfica recente deseja contrariar essa tirada. O gosto pela história vai se firmando no país. A prova mais eloqüente é o sucesso de 1808, livro em que o jornalista Laurentino Gomes reconstitui a aventura de dom João VI na então colônia portuguesa – e que já vendeu perto de meio milhão de exemplares. Na trilha do interesse renovado dos leitores pelo passado de seu país, três novas obras acabam de chegar às livrarias. Cumprem funções essenciais da historiografia: relembrar, revisar, interpretar os fatos. Historia do Brazil recupera o texto pioneiro de frei Vicente do Salvador, escrito no século XVII. Dicionário do Brasil Joanino é uma obra de referência indispensável – e propõe novas interpretações sobre o período. Por fim, a antologia Brasil – A História Contada por Quem Viu traz um painel vigoroso e acessível da história nacional, com base nos depoimentos de quem a vivenciou e construiu. O leitor que deseja entender o Brasil estará bem servido com esses títulos.

O primeiro crítico dos trópicos

Escrito no século XVII por frei Vicente do Salvador,
o pioneiro Historia do Brazil ganha uma reedição cuidadosa

Leonardo Coutinho

Se a carta de Pero Vaz de Caminha é a certidão de nascimento do Brasil, o livro Historia do Brazil (Versal; 592 páginas em dois volumes; 212 reais) é o documento de identidade. Escrito entre os anos de 1626 e 1630 pelo frade franciscano Vicente do Salvador, o texto é considerado a primeira abordagem histórica do país, o que dá ao seu autor o título de pai da historiografia brasileira. Em ordem cronológica, o livro apresenta um relato dos 130 anos da colônia. Uma nova versão da obra acaba de ser lançada, com cuidadosa edição de Maria Lêda Oliveira, pesquisadora pernambucana da Universidade Nova de Lisboa. A publicação tem especial importância quando se considera que foram poucas as edições integrais da obra. Os códices do frade ficaram esquecidos por mais de dois séculos em arquivos brasileiros e portugueses, até a obra ganhar a primeira edição, no século XIX, a cargo do historiador João Capistrano de Abreu – que lançou uma nova versão comentada do livro em 1918. Depois de Capistrano, a Historia só ganharia mais uma edição, em 1965, a cargo do historiador Venâncio Wille-ke, que, como Vicente do Salvador, era um frade franciscano.

Vicente do Salvador foi dos primeiros a atacar o descaso dos portugueses pelo interior da colônia. Os colonizadores contentavam-se, dizia, em "andar arranhando ao longo do mar como caranguejos". O historiador é também um crítico da ganância mercantilista dos portugueses. Condenava as ambições de enriquecimento rápido, com o objetivo de transferir a fortuna para Portugal, prática que era incentivada pela coroa. Como se vê, frei Vicente do Salvador não foi apenas o primeiro historiador do Brasil: também foi um dos mais perceptivos.

Reprodução/Keiju Kobayashi

CARANGUEJOS COLONIAIS
A chegada dos portugueses: eles deram pouca
atenção ao interior



Um guia para os tempos do rei

Um painel do Brasil de dom João VI, na forma de dicionário

Jerônimo Teixeira

"Era no tempo do rei." Assim começa Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, um dos mais engraçados romances brasileiros do século XIX. A referência é a dom João VI, que aportou na então colônia em 1808, fugindo da invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão. O público original de Memórias de um Sargento de Milícias – lançado em 1854, quando dom Pedro II, neto de dom João, era o imperador – teria viva em sua memória afetiva o Rio de Janeiro da corte exilada. Para o leitor atual que desejar alguma familiaridade com o tempo do rei, há um novo instrumento, prático e competente: o Dicionário do Brasil Joanino (Objetiva; 476 páginas; 89,90 reais). Organizado pelos historiadores Ronaldo Vainfas – que já coordenara o Dicionário do Brasil Colonial e o Dicionário do Brasil Imperial – e Lúcia Bastos Pereira das Neves, o livro oferece um vasto panorama da história brasileira de 1808 a 1821.

Com 150 verbetes, o dicionário apresenta os protagonistas da história – estão lá os perfis biográficos de dom João VI e de sua polêmica rainha, Carlota Joaquina – e temas relacionados ao cotidiano da corte e à vida urbana do Rio de Janeiro. Aspectos relativamente pouco discutidos pela historiografia também comparecem. É o caso das guerras indígenas que ainda se travavam no início do século XIX – em maio de 1808, dom João assinou uma carta régia decretando a "guerra justa" contra os botocudos, povo dos chamados "sertões do leste", nos atuais estados de Espírito Santo e Minas Gerais. "Os verbetes não são apenas descritivos, mas analíticos. Apresentam os fatos e os interpretam", afirma Lúcia Bastos. O Dicionário contrapõe-se a uma tradição historiográfica, inspirada por liberais e republicanos dos dois lados do Atlântico, que caricaturizou dom João VI como um monarca atoleimado e glutão. "Ele não foi esse bobão. Dom João VI soube conduzir a política nas condições possíveis de um império que estava em crise e já não contava com o poderio que teve no século XVI", diz Lúcia Bastos. A vinda para o Brasil, sobretudo, foi a seu modo um lance ousado para um monarca europeu – foi o expediente com que o rei português passou a perna no poderoso Napoleão.

Palacio do Itamaraty
IMPÉRIO EM CRISE
O rei português dom João VI:
em guerra com os botocudos


Testemunhas oculares

Uma coletânea organizada pelo historiador Jorge Caldeira revisa toda a história brasileira a partir de depoimentos de época

Mary Del Priore

"Meninos, eu vi": a expressão consagrada no poema I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, define que, antes da ciência, é o poder do olhar que se impõe. Há décadas, o grande historiador francês Lucien Febvre convidou os pesquisadores a multiplicar estudos sobre o que chamou de "suportes do sensível em diversas épocas". Um deles era a visão. Jorge Caldeira acolheu o chamado da mais clássica historiografia, atendendo, igualmente, o leitor interessado no passado do seu país. Sua antologia Brasil – A História Contada por Quem Viu (Mameluco; 656 páginas; 59 reais) é impecável. Reúne documentos e testemunhos na forma de escritos, manuscritos ou impressos, e transcrições de registros audiovisuais. Com a acuidade de um ourives, Caldeira escolheu as histórias mais relevantes e as maneiras de contar mais significativas. Garimpou até documentação inédita, como é o caso da narrativa sobre a Guerra dos Emboabas, nas Minas Gerais do século XVIII. Em ordem cronológica, cada parte do livro se abre sobre uma interpretação das condições econômicas, políticas e sociais do período. Pequenas ementas introduzem o leitor ao texto, localizando o autor e as circunstâncias em que o material foi produzido.

Nos primórdios da colonização, destacam-se os clássicos de Pero Vaz de Caminha e do governador Mem de Sá, entre muitos viajantes estrangeiros. No século XVII, sobressaem narrativas do padre jesuíta Jerônimo Rodrigues, dos holandeses que ocuparam a Bahia e o Recife e os cronistas clássicos: Vieira, Antonil e frei Vicente do Salvador. Já no século XVIII, a documentação é marcada pela preocupação com o ouro e os impostos: depoimentos de bandeirantes ombreiam com os de autoridades portuguesas e há versões variadas sobre os conflitos e revoltas, dos Mascates à Inconfidência Mineira. Com o aparecimento da imprensa, no século XIX, multiplicam-se as experiências pessoais em textos. Os documentos contemplam os grandes momentos da história, mas também aqueles mais discretos, que a historiografia contemporânea elege como fundamentais: o cotidiano nas cidades e sertões, a vida dos escravos, as práticas de religiosidade ou as relações afetivas. Moldado pela indústria cultural e pela expansão da leitura, o texto no século XX torna-se breve, vai direto ao ponto. O leitor vai se deliciar com a chegada dos imigrantes japoneses, o velório de Machado de Assis ou as primeiras crônicas jornalísticas sobre o futebol. De Vargas ao golpe de 1964, documentos apontam a complexidade do dia-a-dia: da inauguração da Transamazônica às greves do ABC, da doença de Tancredo à denúncia que derrubou Collor.

Pedagógico e erudito ao mesmo tempo, Caldeira nos convida a uma viagem no tempo através de várias visões. Visões que nos ajudam a conhecer a história, mas também a compreender os sistemas de valores nas quais foram produzidas. Visões que nos incentivam a nos enxergar a nós mesmos, não como simples espectadores, mas como atores desta mesma história.

Coleção Museus Castro Maia/Reprodução Vicente Mello

VISÕES MÚLTIPLAS
O trabalho escravo no traço de Debret: documentos
que revelam o cotidiano de cidades e sertões



Em primeira mão

Trechos de quatro dos 173 textos reunidos em
Brasil – A História Contada por Quem Viu

Biblioteca Municipal Mário de Andrade

"Golpeia o prisioneiro na cabeça, de modo que lhe saltam os miolos. Imeditamente as mulheres levam o morto, arrastam-no para o fogo. (...) Depois de esfolado, toma-o um homem e corta-lhe as pernas acima dos joelhos, e os braços junto ao corpo. (...) As vísceras são dadas às mulheres. (...) O miolo do crânio, a língua e tudo o que podem aproveitar comem as crianças."
Ritual de antropofagia indígena descrito pelo alemão
Hans Staden, no século XVI

Minc/ Sphan/ Pro-menor/ Museu C. Maia

"No Brasil predomina a escravidão negra e os brasileiros recuam com algo semelhante ao horror diante dos serviços manuais. (...) Interrogando-se um jovem nacional de família respeitável e em má situação financeira sobre por que não aprende uma profissão, há dez probabilidades contra uma de ele perguntar se o interlocutor está querendo insultá-lo! ‘Trabalhar! Trabalhar!’, gritou um deles. ‘Para isso temos os negros.’ "
Thomas Ewbank, viajante americano, em 1846

"Vi quando meu pai levantou de pijama, passou pelo corredor, foi até o gabinete e voltou. O revólver sempre esteve na mesinha dele. (...) Alguém me segurou pelos ombros e disse: – Alzira, seu pai! Eu saí correndo feito uma doida e me joguei sobre o corpo dele. Ele ainda estava vivo e tive a impressão de que esboçava um sorriso. Olhei para o médico que estava ao lado, e ele me fez sinal de que não havia solução."
Alzira Vargas, relatando a morte do pai, Getúlio Vargas, em 1954

Luciano Andrade

"Foi uma violência estúpida, inútil e imbecil. (...) Amanhã, ao amanhecer, os brasileiros vão ler os jornais, vão ver as metralhadoras e os cães impedindo que brasileiros pacíficos exercitem um direito que está na Carta Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário. Nós não temos armas. (...) Os cães ladram, mas a caravana passa."
Discurso do deputado Ulysses Guimarães contra a ditadura, em 1978, depois que policiais com cães tentaram impedir uma manifestação eleitoral

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