Augusto de Franco (29/11/06 08:53)
No dia 15 de agosto de 2004, às 13 horas e 42 minutos, Antonio Fernandes publicou um artigo, no site e-Agora, intitulado "Despedida" (tratava-se de uma primeira interrupção na sua colaboração com aquele site). Quase um anos antes do escândalo do mensalão e do conhecimento público da enxurrada de crimes do governo corrupto de Lula da Silva, quando muito pouca gente via com clareza o que estava acontecendo no país, Fernandes lançou oito teses que continuam atualíssimas. Só agora - mais de dois anos depois - alguns oposicionistas mais visionários começam a cogitar esses assuntos (sem alcançar grande sucesso entre seus pares, registre-se). Vale a pena conferir.
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Despedida
Antonio Fernandes, e-Agora (15/08/04 13:42)
O motivo básico é de natureza profissional. Compelido a assumir uma nova função em outras paragens, não terei tempo, nem condições, para me debruçar, em detalhes, sobre o dia-a-dia da política nacional. Mas o nome do último artigo (excluindo este) que publiquei aqui –"Pregando no deserto" (05/08/04) – não deixa de indicar também uma outra razão para essa decisão.
Está fazendo praticamente um ano desde que comecei a colaborar com e-agora. De lá para cá publiquei dezenas de artigos e notas procurando desvendar as reais intenções (e/ou as reais conseqüências das opções) do 'PT-no-governo'. Juntados, tais escritos poderiam dar um livro bem interessante sobre o que está acontecendo no Brasil a partir de 2003. Talvez até pudesse ser publicado. Quem sabe algum dia, como história, já que os atores políticos demonstram não precisar de tais análises na atualidade. Apesar de estarem a léguas de distância da compreensão do fenômeno político, complicadíssimo, que ocorre neste momento no país, comportam-se como se estivéssemos vivendo em uma situação perfeitamente normal e imaginam que, mais cedo ou mais tarde, tudo seguirá o curso habitual das disputas representativas em uma democracia. Digo com sinceridade: seria ótimo, para todos nós, até mesmo para o governo, se tivessem razão.
Mas a verdade é que o processo de democratização da sociedade brasileira vem sendo enfreado, a partir de 2003, por força da atuação do PT no governo. Não que os ritos formais da democracia representativa estejam sendo suprimidos. Trata-se de outra coisa (não propriamente de rito, mas de ritmo): o ritmo do processo de democratização está sendo alterado. Isso não é uma abolição da democracia, mas pode ser interpretado como um retrocesso autocratizante e, portanto, como uma ameaça grave à democracia brasileira.
Essa ameaça que paira, como uma sombra escura, sobre o Brasil, desde que se instalou o 'PT-no-governo', ainda não é vista como um problema estratégico pela maioria dos atores políticos democráticos e pelos formadores de opinião.
Muitos acham que tal avaliação é um exagero. Não percebem que há uma presença opressiva, muito agressiva, mas cuja agressividade vem sendo por enquanto contida por falta de força política para se manifestar e pela resistência difusa da sociedade brasileira. Se houver incremento de força política e relaxamento da vigilância democrática (como agora, por exemplo, com o aumento dos índices de aprovação de Lula e do governo em virtude do crescimento da economia) eles investirão para reduzir liberdades e tornar mais rarefeita a atmosfera democrática em prol de sua manutenção no poder. Não se trata, é bom repetir, de qualquer coisa parecida com um golpe, com o fechamento do Congresso, com o fim das liberdades constitucionais e com a instalação de uma ditadura. Nada disso. Aventar tais hipóteses, pelo menos hoje, seria ridículo.
Do que se trata, então, afinal? Trata-se do seguinte: mais intervenção do Estado e menos protagonismo da sociedade; mais centralização; mais privatização partidária da esfera pública; menos diversidade ideológica; menos disposição para compartilhar hegemonia; menos capacidade para conviver com a diferença; menos capacidade de fazer política com quem não pertence ao mesmo grupo ou a ele se sujeita; mais exigência de subordinação (ou, até, de subserviência) dos que pertencem a outros grupos; logo, mais rarefação da atmosfera democrática. A organização privada chamada PT - na sua fase atual, como 'PT-no-governo' - é a que está patrocinando tudo isso. Sim, essa mesma organização que apoia o estatismo populista e regressivo de Chavez na Venezuela, que se deixa encantar pelo dirigismo Chinês (o crescimento é a justificativa para a implantação de uma perspectiva estatizante) e que sonha em transformar seu líder em um novo condutor dos povos, que está nos remetendo de volta para o século 20 (no qual, aliás, ocorreram milagres econômicos sob regimes autoritários, com Geisel no Brasil e Pinochet no Chile, por exemplo).
É fato: o ‘PT-no-governo’ está freando o processo de democratização da sociedade brasileira ao: a) difundir uma cultura adversarial, contaminando o jogo político democrático; b) praticar o hegemonismo e o aparelhismo em todos os setores da administração e, sobretudo, na base da sociedade, nos conselhos e outros mecanismos de participação cidadã; c) manipular as massas pela propaganda política e pelo palanquismo presidencial; d) partidarizar (i. e., privatizar) o espaço público governamental e não-governamental; e) praticar um fisiologismo exacerbado (e "no atacado") no Congresso; e f) tentar voltar atrás em relação aos avanços conquistados na última década, por um lado reeditando a centralização, o paternalismo, o assistencialismo e o clientelismo nas políticas públicas e, por outro lado, estabelecendo mecanismos estatais de controle sobre a sociedade (controle da produção e divulgação audiovisual, controle da atividade jornalística, controle da relação de funcionários estatais com a imprensa, controle dos cidadãos por meio da investigação da sua vida privada por órgãos de inteligência etc.)
Do ponto de vista da democracia tais investidas autocratizantes são inaceitáveis. Constitui imperativo estratégico barrá-las antes que atinjam um ponto, de contração da esfera pública e de ingerência estatal na vida privada, a partir do qual comece a ser restringida seriamente a liberdade coletiva e individual.
Pois bem. Ao que tudo indica, o ritmo da democratização apresentado na década anterior não será retomado por si só, sem a atuação de uma oposição política eficaz e de um movimento de resistência democrática mais vigoroso da sociedade. Mas por insuficiência de compreensão desse fenômeno – inédito – que ocorre no país e por falta de projeto estratégico sintonizado com a contemporaneidade, as oposições partidárias atuais não têm condições de cumprir tal papel. Da mesma forma, as manifestações de resistência da sociedade, restritas em grande parte à imprensa e a alguns poucos setores organizados, são ainda muito incipientes e localizadas para dar conta de barrar as investidas antidemocratizantes do atual governo.
Neste artigo final peço a licença do leitor para repetir aquelas oito teses publicadas aqui há cerca de uma semana (em "Pregando no deserto") e que se referem à necessidade de reinventar a oposição política no Brasil de 2004. Espero que alguém, algum dia, se anime ou a refutá-las (para o bem geral da nação) ou a desenvolvê-las e, nesse caso, de tirar as conseqüências devidas. Antes que seja tarde.
Tese I - A continuidade do PT no governo é um retrocesso no processo de democratização da sociedade brasileira, uma afronta ao espírito e às práticas republicanas e, portanto, um problema estratégico para o país.
Tese II - O PT não é uma agremiação da mesma natureza das demais. O ‘PT-no-governo’ - que representa a terceira forma histórica assumida pelo PT - está se instituindo como uma espécie de Estado dentro do Estado.
Tese III - O PT não deixará o governo por si mesmo, por cansaço, desinteresse ou inapetência, nem de lá será tirado apenas pelo jogo de salão que se pratica nos parlamentos e, de dois em dois anos, nos palanques. Se houver tempo suficiente, as dificuldades iniciais do atual governo tendem a ser superadas (e ele já teve tempo de sobra para aprender a metabolizar as crises). Se lhe for dada "trégua amigável" ele tende a vencer a maioria das disputas políticas (pois que foi talhado para isso e para tanto está melhor preparado do que os demais partidos), inclusive as eleitorais.
Tese IV - Não sendo possível tirar o PT do governo somente por meio do jogo parlamentar e da disputa eleitoral episódica impõe-se novo comportamento da oposição nos marcos da democracia. Um plano de poder como o do 'PT-no-governo' não pode ser enfrentado por uma liturgia democrática normal, sem uma resistência democrática da sociedade.
Tese V - Mesmo assim, uma resistência da sociedade, sempre difusa por sua própria natureza, também não é capaz, por si só, de tirar o PT do governo. Um projeto político não pode ser enfrentado por um processo social, mas, somente, por outro projeto político.
Tese VI - Para articular um amplo movimento político capaz de apear o PT do governo é necessário construir um novo projeto político que contenha, para além de um programa de governo mais sintonizado com a contemporaneidade, um plano de poder.
Tese VII - Se o ‘PT-no-governo’ não for confrontado por um amplo movimento político com tais características, as chances de alternância no poder na próxima década serão mínimas (não estou falando do governo democrático enquanto instituição republicana, a qual todos devemos preservar independentemente de quem ocupe os seus postos e sim dessa (com)fusão entre partido e Estado que está sendo promovida a partir de 2003 no Brasil).
Tese VIII - As oposições deveriam levar a sério o assunto, investindo todas as suas forças, para, por um lado, dentro do que permite a democracia, barrar - e não somente durante os momentos eleitorais - a privatização partidária do Estado representada e operada pelo 'PT-no-governo' e, por outro lado, para, simultaneamente, construir uma nova alternativa política.
O reconhecimento da existência dessa ameaça deveria ser a base de um primeiro consenso capaz de pautar a atuação dos democratas a partir de agora. Não sendo possível converter o petismo atual à democracia como valor, a única conclusão possível é a seguinte: é absolutamente necessário, é vital para a democracia, tirar o PT do governo. Ou isso vira uma verdadeira obsessão, uma ação cotidiana de proposição alternativa, de fiscalização, de denúncia, dentro e fora do país, de desestabilização mesmo – não do governo, mas da organização privada que está se apossando de todos os mecanismos públicos de decisão, das fontes de recursos e dos organismos de controle – ou teremos, os democratas, os que apostam na força de uma sociedade livre e aberta, pouquíssimas chances na próxima década.
As consequências serão horríveis. Os efeitos dessa permanência de longo prazo no comando do Estado serão tão maléficos para as instituições republicanas e para as relações entre Estado e sociedade que é doloroso apenas pensar no assunto. Mas estão com a palavra os que acham que, mesmo assim, devem pensar no assunto e, sobretudo, os que acham que podem fazer alguma coisa para que isso não aconteça.
Infelizmente, tenho que parar por aqui. É uma despedida dos leitores de e-agora. Além das razões que apresentei no início deste artigo, existe uma outra: de tanto bater na mesma tecla, corro o risco de começar a me repetir. Espero, todavia, ter dado alguma contribuição.