O Globo |
20/12/2006 |
Outro dia eu li um texto que lamentava a ausência da "crônica autêntica": a que envolvia pedaços preferencialmente leves ou pitorescos da vida do seu autor na coluna semanal que, por prazer e gosto profissional, escrevia. Saudade dos escritos de um Rubem Braga, de um Henrique Pongetti, de uma Elsie Lessa, isso para não falar de monstros sagrados como Drummond, Nelson Rodrigues, Antonio Maria, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende, que combinavam prosa e poesia com os eventos do cotidiano, deles arrancando aquela quota de ouro que só existe no olhar dos bons observadores da vida em sociedade. Claro que, a despeito de convicções pessoais e formação profissional, todos escreveram na era pré-globalização, quando não existiam complicadores como Bin Laden, George Bush e, citemos a nossa reluzente prata da casa, um governo petista, José Dirceu, o tal "núcleo duro" e uma presidência Lula que - acho que ninguém tem mais a menor dúvida - irá mudar definitivamente este país. Não havia também um César que, sem ser Julio ou romano, produziu uma sentença equivalente ao clássico "alea jacta est", quando disse desafiador: "Ilegal, e daí?", ao ser confrontado com a construção de um edifício de cinco andares numa favela carioca. Eles também não conviveram com um Brizola que, no auge de sua sensibilidade de estadista, mandaria fuzilar o Fernando Henrique Cardoso. Ou com os eventos do mensalão e do dossiê que conduziram ao atual pré-governo de coalização, esse conceito favorito da grande maioria dos políticos nacionais. Esses políticos ultra-sensíveis que conseguem ser leais aos seus partidos e mais ainda a si mesmos e que, para não desmentir o quanto valem, aproveitaram a semana pré-natalina e dobraram, num autopresente mais do que apropriado, os seus insignificantes proventos. Eles também não ouviam o Orlando Silva, o cantor das multidões, ou o Francisco Alves, o rei da voz, solfejando - como faz o nosso magnífico Roberto Carlos, o tal "se ela dança, eu danço" ou as notáveis paródias morais do Gabriel Pensador, o nosso La Fontaine. Longe deles estava também uma polícia que tenta inutilmente se deter a si própria, num movimento suicida, desses que só ocorrem quando o crime, além de ser visto como normal, passa a ser também um valor. Um instrumento de aristocratização e uma profissão a ser empreendida com zelo, honra e alta eficiência. Naqueles tempos, quando o Rubem Braga escrevia sobre a praia que tanto amava, a baía de Guanabara não tinha essas águas capazes de manchar para sempre o manto de Nossa Senhora, ou de impedir o batizado de Cristo por São João Batista porque, com tifo ou coisa pior, Jesus deixaria de morrer na cruz e a profecia salvacionista do grande contrato com a humanidade não aconteceria. Imagine o que diria um Antonio Maria de um político que tivesse proposto construir um muro em torno de uma favela? Ou o que escreveria um Nelson Rodrigues diante dos discursos filosóficos do presidente Lula? Ou diante do apagão aéreo que não tem remédio e das agências responsáveis que nada agenciam, exceto o caos? Será que pediriam, como fazia volta e meia o Tarso Genro no governo FHC, o impedimento do presidente da República? Como, então, tentar fazer crônicas sobre cotidianos amenos, com jantares e drinques em boates onde todos se conheciam e sabiam exatamente quem eram e de onde vinham, diante desta furiosa mistura de insanidade, incompetência, ausência de responsabilidade moral e, sobretudo, de sinceridade que ataca o universo político brasileiro? Hoje, sábado, dia em que escrevo essas linhas conservadoras e fora do seu tempo, descubro que a fossa sanitária está entupida. Daí o refluxo de matéria suja e impronunciável, de resíduos nojentos, que ameaçam invadir os banheiros e a casa como um todo. Ontem, uma chuva de verão veio acentuar o problema porque a prefeitura de Niterói, com sua proverbial dedicação e eficiência ao contribuinte, não tem como conter as enxurradas que, encharcando o bairro, impedem o escoamento destravado e livre das águas e entope os esgotos. Pensei, então, nesta crônica de feitio antigo, onde desejo enlaçar, como faziam os grandes mestres, essas coisinhas leves do nosso cotidiano - assaltos com morte, venda de drogas debaixo do nosso nariz, polícia corrupta que volta e meia prende a si mesma e só a faz piorar, e a paralisia administrativa causada pela atordoante festa de diplomação dos eleitos que choram de emoção - com os eventos mais íntimos. Essas coisas triviais como a morte do filho devido ao stress promovido pela malversação administrativa da empresa onde trabalhou lealmente até o fim, e o absoluto descaso de um governo eleito para defender os trabalhadores e os interesses nacionais; a inocência dos netinhos escrevendo suas histórias e fazendo seus desenhos; a velhice feliz com a mulher amada, a avó mais bonita e desejável do mundo. E para dar um toque de realidade nesta vida amena e saudável, o entupimento da fossa que me fez perder a manhã. Essa manhã de verão, linda e esplendorosamente promissora. Afinal - e eu peço perdão aos leitores pelo desabafo -, de vez em quando temos que deixar a lida das flores para mexer com a merda. |
Entrevista:O Estado inteligente
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quarta-feira, dezembro 20, 2006
E a fossa entupiu...- ROBERTO DaMATTA
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