Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 08, 2005

Merval Pereira:O dilema do PT

Vinte e três anos depois de fundado, o PT chegou ao poder central do país com seu maior ícone, o líder operário Lula, sendo eleito presidente da República depois de três derrotas consecutivas, duas delas para seu maior rival na política, o PSDB. Completado pouco mais da metade do primeiro mandato, Lula está com a popularidade em alta, a economia está em crescimento, e há chances reais de ele continuar no poder em 2006.

O PT, no entanto, se debate em uma crise de identidade permanente, que por sua vez gera crises políticas sucessivas, expondo as fragilidades do governo e abrindo caminho para questionamentos sobre a capacidade do PT e de Lula de governarem o país.

Na esteira da novidade que é o PT no governo, dois recentes trabalhos acadêmicos, coincidentemente de jornalistas que defenderam teses no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio e Janeiro ( Iuperj), tentam explicar a trajetória petista até o poder, e as razões de sua atuação ambígua e permanentemente conflituosa.

O cientista político Jairo Nicolau, pesquisador do Iuperj, diz que o PT "é um partido fascinante. Nenhum partido foi tão pesquisado, esmiuçado, analisado quanto ele, nem o velho PCB". Uma das teses, de Paulo Roberto Figueira Leal, transformou-se em um livro —"O PT e o dilema da representação política: os deputados federais são representantes de quem?" — e Jairo Nicolau a considera "o melhor estudo sobre a bancada do PT na Câmara. E certamente um dos trabalhos mais originais sobre o partido". Paulo Roberto fez uma pesquisa com a bancada federal do PT para entender como os deputados trabalham e a quem representam.

A outra tese de mestrado em ciência política, de Rodrigo de Almeida Ribeiro, tem o título "Ao Brasil sem medo, a idéia petista de nação feliz", e procura explicar a integração entre o jogo político e a felicidade na campanha que levou Lula à Presidência sob o slogan "sem medo de ser feliz". Os capítulos que analisam a construção do partido, e o caminho até as alianças políticas pragmáticas da campanha de 2002, são especialmente úteis para se tentar entender o que se passa com o PT no poder.

Segundo Paulo Roberto Leal, os valores a partir dos quais o PT se organizou são a defesa do consenso, com a participação ativa das minorias nos processos decisórios, a idéia de que a representação deve ter relação direta com as bases, e de que os mandatos devem ser exercidos de maneira imperativa, não virtual.

Ele lembra, porém, que várias mudanças estatutárias aconteceram desde 1980, e há indícios de que alterações mais profundas surgirão no futuro, a partir do que ele chama de "desafios inaugurados com o governo Lula": desejo da direção partidária e dos ocupantes de cargos de poder de terem maior autonomia decisória; crescimento institucional do partido, com a conseqüente profissionalização, e fortalecimento dos mandatos parlamentares.

Segundo ele, as mudanças já podem ser percebidas na prática política cotidiana, "cada vez mais orientada pela disputa no mercado eleitoral, com a ampliação do arco das alianças e o pragmatismo na condução das campanhas eleitorais". Seu estudo mostra que a atuação legislativa dos deputados petistas é significativamente influenciada pelas decisões partidárias coletivas.

Diante das limitações impostas por normas, práticas, ideologia e a história do PT, a maioria dos deputados transforma seu gabinete em máquina eleitoral de atendimento às organizações sociais a cujas bases eleitorais estão ligados. Mais de 60% dos deputados recrutam seus funcionários por indicação dos movimentos sociais, e em alguns gabinetes, a totalidade dos funcionários é oriunda desses movimentos.

A posição hegemônica no partido é de que o mandato pertence ao PT, é favorável à fidelidade partidária e ao fechamento de questão. A influência do partido nas eleições é menor, na percepção dos deputados, que consideram que no processo eleitoral eles têm um papel tão importante quanto o da legenda. Todas essas especificidades petistas levam, segundo Paulo Roberto, a "um adensamento das tensões entre segmentos do partido, como deputados federais que têm vínculos de representação com movimentos sociais, e o governo, que implementa um programa por vezes contrário às propostas destes movimentos".

Paulo Roberto acha que "o risco de rupturas significativas é maior hoje do que foi em qualquer momento anterior da história do PT. Se acontecerá ou não dependerá dos pactos internos que se estabelecerem". Ele ressalta que "obrigar um deputado a votar contra os interesses de suas bases, como tem ocorrido com muitos parlamentares do PT, implica gerar tensões. Se estas tensões forem sistemáticas e estruturais, como parece ser o caso das divergências sobre os rumos da política econômica, o problema é maior e mais complexo".

Essas tensões não se limitam, ele lembra, à esquerda do PT. Também setores normalmente próximos ao Campo Majoritário, grupo ligado a Lula e José Dirceu que domina o partido, enfrentam estes dilemas: o lançamento da candidatura da deputada Maria do Rosário à presidência do PT pela tendência Movimento PT, que não está na esquerda partidária, é um sinal dessas tensões.

Para o deputado Chico Alencar, da esquerda do PT, "o governo Lula reaglutinou a direita e dispersou a esquerda". A prova seria a esquerda petista ter três candidatos à sucessão de José Genoino. Essas candidaturas representam a lógica das tendências prevalecendo, inclusive para unificá-las, porque elas têm enormes dissensões internas.

Um candidato é Raul Pont, da Democracia Socialista, de tendência trotkista; outro é Walter Pomar, da Articulação de Esquerda, facção comunista-leninista; e outro é Plínio de Arruda Sampaio, fundador do partido, lançado por um grupo independente e pela esquerda católica.


O jornalista Rodrigo de Almeida Ribeiro, na sua tese de mestrado em ciência política no Iuperj, "Ao Brasil sem medo, a idéia petista de nação feliz", acha que o pragmatismo eleitoral, que ficou como marca da campanha de 2002 do PT que levou Lula à Presidência da República, "apenas consolidou sucessivas transformações. A metamorfose foi resultante de um processo lento de institucionalização da legenda".

Em 23 anos, "em vez de fazer a revolução que sonhava para o Brasil, o PT revolucionou a si mesmo, trocando os debates sobre o partido sem patrões e o governo dos trabalhadores pela convenção festiva de 2002 que lançou a chapa vitoriosa com um empresário como vice", ressalta.

As mudanças de posição sempre foram seguidas de frases como a de Lula: "Eu mudei, o país mudou, o PT mudou". Para se ter uma idéia do grau de mudança operada no interior do PT em sua trajetória até o poder, basta lembrar que na primeira comissão provisória do PT, 12 dos 16 membros eram sindicalistas. No fim da década de 80, dos 20 membros, apenas dez eram sindicalistas, e desses apenas quatro vinham do sindicalismo operário. "Pela predominância de professores e profissionais liberais, deve ser caracterizado como um partido de classe média assalariada", cita Rodrigo.

Em 1989, o partido supunha serem impossíveis "alianças estratégicas com a burguesia e com as forças políticas que sustentavam a dominação e a hegemonia da classe burguesa e a perpetuação do sistema capitalista". Ainda defendia o socialismo, que viria "não de simples reformas superficiais e paliativas, mas sim de uma ruptura radical contra a ordem burguesa e a construção de uma sociedade sem classes, igualitária, que, por meio da socialização dos principais meios de produção, vise a abundância material para atender às necessidades materiais, sociais e culturais de todos e de cada um de seus membros".

Já em 1991, Rodrigo lembra que "não por acaso o exemplo de revolução mencionado e o da chamada revolução de veludo nos países do Leste Europeu, nos quais se implantaram, com a mobilização pacífica da população, a democracia política e a liberdade de mercado na região antes controlada pela URSS. É nesse contexto que surge a expressão revolução democrática".

O PT também rejeitava a política social-democrata baseada num Estado de bem-estar social que, segundo o partido, "apropria-se de parte do excedente econômico, através de políticas fiscais, e o repassa para políticas sociais destinadas a compensar as desigualdades provocadas pelo mercado".

Hoje, o deputado Chico Alencar, da esquerda do PT, tem a impressão de que houve um crescimento do apoio popular, "sobretudo na população mais inorgânica, com menos informação", graças a políticas assistencialistas como o Bolsa-Família. "Agora no povão a figura do Lula e mesmo o PT têm mais aceitação. O Bolsa-Família tem uma capilaridade pelo interior, de forma fortemente assistencialista e com peso eleitoral", diz ele.

O encontro nacional do partido que ocorrerá em dezembro vai expor, segundo Alencar, "a maior nitidez de posições e campos de disputa, e de conteúdo". O Campo Majoritário quer retirar do estatuto do partido o socialismo como objetivo, e quer incluir no documento desse encontro "que o equilíbrio fiscal, na dinâmica de um país capitalista como o Brasil, é um valor não ideológico e criar uma certa independência dos mecanismos econômicos e monetários".

Chico Alencar diz que "jamais tirarão" o socialismo do estatuto, e garante que a defesa da política econômica "gerará um forte debate dentro do partido". Paulo Roberto Leal, por sua vez, diz que "Lula tem enorme respaldo popular e grande sintonia com as massas. Mas a agenda do governo é muito dissonante da agenda de significativas parcelas do partido e de suas bases eleitorais".

Ele lembra que com o fortalecimento do Campo Majoritário durante o governo Lula — o partido chegou ao poder com 650 mil filiados, e hoje tem 840 mil filiados, num trabalho do grupo liderado por José Genoino, partidário de Lula e José Dirceu — é provável, portanto, que ele continue predominando.

Uma mudança de rumos na economia, o ponto mais sensível dentro do partido, "dependerá do grau de insatisfação dentro do partido. Se até mesmo segmentos importantes do Campo Majoritário vislumbrarem riscos de perda de representatividade junto a setores relevantes do eleitorado petista caso se mantenha a política econômica, é possível que ela mude", avalia Paulo Roberto, apesar de, pessoalmente, não considerar provável, "dadas as expectativas de reeleição de Lula".

Um fator crucial para a determinação deste processo é o cenário eleitoral, diz Paulo Roberto. Em 2002, Lula pôde fazer um movimento em direção ao centro porque não havia alternativa mais à esquerda eleitoralmente consistente. "Em 2006, este cenário pode ter mudado, sobretudo se o PSOL efetivamente se consolidar e se a candidatura de Heloísa Helena ganhar espaço", analisa. Segundo ele, "pode ser que, por vias transversas, os dissidentes do PT consigam o que pretendiam: obrigar o governo petista a recuperar o discurso e a buscar efetivamente a implementação de um programa de governo mais petista".

O deputado Chico Alencar acha isso também, mas acredita em uma mudança apenas na campanha eleitoral. Ele acha que "o futuro do PT é uma incógnita", mas não crê em uma cisão maior até a disputa presidencial do ano que vem, quando haverá, segundo ele, uma polarização PSDB/PFL e o PT, "e Lula terá um discurso mais à esquerda, mais próximo de sua história do que da sua prática de governo".

O GLOBO

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