O tango argentino
Os líderes sul-americanos parecem disputar entre si para saber qual é o mais idiossincrático. A tal ponto que o presidente Lula, que até pouco tempo era a representação da besta-fera, transformou-se no grande conciliador regional e pode se dar ao luxo de algumas extravagâncias na política externa enquanto for a melhor alternativa de equilíbrio político na região.
Entre o histrionismo antiamericano de Hugo Chávez, e as bravatas de Néstor Kirchner, Lula representa o líder político mais sensato num continente dominado pelo esquerdismo político.
O socialista Lagos poderia ser uma alternativa, mas o Chile, embora participe de todas as associações, não tem peso político e tem uma condução independente na América Latina que o coloca mais próximo de economias do Primeiro Mundo do que de uma agenda sul-americana.
O comportamento do presidente da Argentina, Néstor Kirchner, nos recentes encontros regionais, culminando com a saída intempestiva da reunião da Cúpula América do Sul-Países Árabes, revela o sentimento de ciúmes que domina sua administração.
Ciúme não é uma palavra política, mas está sendo usada pela diplomacia, pois nenhuma outra expressa melhor o sentimento dos argentinos. Eles sentem uma frustração muito grande por terem perdido terreno para o Brasil, de terem perdido a paridade no tratamento internacional, o que ficou evidenciado na recente viagem da secretária de Estado americana Condoleezza Rice, que simplesmente riscou Buenos Aires de seu roteiro.
Mas, na verdade, o que o Brasil tem oferecido é uma parceria igualitária. Eles se convenceram, erradamente na visão do Itamaraty, de que, ao criar a Comunidade Sul-Americana, o Brasil está enfraquecendo o Mercosul. O governo brasileiro está tentando, através de diversos interlocutores, fazer com que a Argentina entenda que a Comunidade é uma criação eminentemente política, e o Mercosul fundamentalmente econômico, e portanto não brigam entre si.
O protagonismo do Brasil na América do Sul, reduzindo-os à condição de coadjuvantes, é outra queixa recorrente, que revela um sentimento de inferioridade em relação ao Brasil, uma crença de que o Brasil poderia administrar a seu bel-prazer uma reunião de 12 países, e que eles se veriam arrastados por uma força irresistível de nosso peso político e econômico. O governo brasileiro argumenta que para exercer protagonismo, não estimularia a criação de um organismo onde todo mundo tem voz independente. Tentaria fazer uma política bilateral, como os Estados Unidos estão tentando dentro da região que abrangeria a Alca, e não criaria um organismo multilateral.
Esse sentimento de desconforto revelaria uma crença profunda da Argentina na impossibilidade de se utilizar da Comunidade para criar um diálogo sul-americano equilibrado. A recente conversa dos três presidentes, Hugo Chávez, da Venezuela; Néstor Kirchner da Argentina, e Lula, em Brasília, revelou, porém, que a união pode gerar projetos importantes para a região, como a empresa de energia comum, ou o banco de desenvolvimento regional.
Uma das queixas da Argentina é de que as indústrias brasileiras têm o apoio do BNDES, com financiamentos a juros baixos. Embora o banco de desenvolvimento brasileiro esteja aberto a financiar obras de infra-estrutura de integração regional, não é possível financiar a indústria argentina, mas esse banco proposto por Chávez pode ter esse papel.
O governo brasileiro está tentando convencer os argentinos de que, ao invés de jogarem um jogo positivo conosco, estão transformando em derrota o que poderia ser uma parceria proveitosa. Na questão do Conselho de Segurança da ONU, por exemplo, a Argentina apóia a solução que não aumenta o número de membros permanentes, mas sim os rotativos, que ficariam por mandatos de dois anos, podendo ser reeleitos.
O Brasil, que quer um assento permanente, até já ofereceu à Argentina um lugar na sua delegação oficial, caso sejamos eleitos. Essa atitude não seria novidade, pois os argentinos, enquanto estavam fora do Conselho, tiveram, em 2004, um representante na nossa delegação, o ministro Garcia Moritan, que passou um ano atuando e fez até discurso em nome do Brasil. Agora não é mais preciso porque eles também já estão no Conselho de Segurança como membros rotativos.
Na verdade, o que está em jogo é a crença brasileira, que deveria ser comum aos argentinos, de que só se pode trabalhar a América do Sul através de um entendimento claro entre Brasil e Argentina. O que os argentinos não estariam enxergando é que a América do Sul, por mais institucionalizada que esteja, com o Brasil de um lado e a Argentina de outro, perde a importância.
O governo brasileiro, ao mesmo tempo que dá demonstrações concretas de apoio, tenta convencer os argentinos de que se ocuparem esse espaço que pertence a eles, ao lado do Brasil, tudo se resolve positivamente. Desde a guerra das Malvinas, o Brasil coopera politicamente com a Argentina, tendo negociado todos os acordos com a Inglaterra, e representado a Argentina em todos os fóruns internacionais. Agora mesmo, ainda colocou no comunicado da reunião com os países árabes, uma referência às Malvinas, um claro agrado à Argentina que vai trazer problemas com a Inglaterra.
Num raciocínio bruto, mais difícil do que aceitar a predominância brasileira é acabar ficando sem nada. Ser segundo na América do Sul unida é melhor opção do que ser segundo na América do Sul desunida, é o recado sutil que está chegando a Buenos Aires.
O peso do petróleo
A criação da Comunidade Sul-Americana, com a qual o presidente Lula, em uma das muitas vezes em que usou indevidamente as palavras, queria colocar fora da agenda brasileira as negociações da Alca, é vista como a expressão da política hegemônica brasileira na região, e por isso a Argentina reage tanto a ela.
Como a palavra tem importância fundamental na condução da política externa de um país, a reiterada busca da construção de uma nova “geografia comercial” no mundo, para podermos ter importância geopolítica na América Latina que nos torne interlocutores obrigatórios nas negociações internacionais, é entendida por nossos parceiros mais próximos como tentativa de usar os vizinhos para se autopromover no cenário internacional.
O objetivo declarado do projeto brasileiro é criar, com a união do Mercosul (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai) e do Pacto Andino ( Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia), um pólo político e econômico que se contraponha aos já existentes, como a Comunidade Européia, o Nafta e o grupo de países asiáticos. E que force uma negociação vantajosa da Alca, na impossibilidade de substituí-la.
A administração Bush parece já ter entendido o dilema do governo petista, que é de um pragmatismo surpreendente na condução das negociações políticas, sejam internas ou externas. Tanto que o ex-guerrilheiro José Dirceu transformou-se no auto-proclamado melhor canal de entendimento com a administração republicana, a tal ponto de atribuir-se a ele o desejo de vir a ser, num provável segundo mandato de Lula, embaixador do Brasil em Washington.
Esse pragmatismo faz com que o chamado “núcleo duro” do governo, que controla o PT, já se tenha convencido, desde a campanha, de que não há condições objetivas para a implantação do socialismo ou para grandes rupturas, e trate de levar o governo dentro de padrões que os críticos chamam de conservadores ou até mesmo neoliberais.
Com relação à retórica, aí são outros quinhentos. Todas as facções e linhas auxiliares abrigadas dentro do PT continuam livres para dizer o que quiserem, discutir o que bem entenderem, desde que na hora de votar votem com o governo.
Na política externa, há um campo mais amplo para bravatas que compensem a ortodoxia da política interna. A política externa americana delega às chamadas “potências regionais” a mediação dos conflitos de suas áreas, e por isso pediu que o Brasil assumisse a força de paz no Haiti.
A secretária de Estado Condoleezza Rice classificou o Brasil de “potência regional prestes a se tornar potência mundial”, e aparentemente, apesar de tropeços como os ocorridos na recente reunião dos países árabes, a posição de liderança do Brasil na América do Sul lhe garante papel de destaque em Washington.
Ainda mais no momento em que a região está, se não dominada, pelo menos majoritariamente ocupada por governos de esquerda, e com alguns focos remanescentes de movimentos revolucionários como as Farc na Colômbia, o bolivariano neo-socialista Hugo Chávez, e o MST brasileiro.
Lula e a versão pragmática do PT representam a esquerda democrática na América Latina, e são a única força capaz de negociar com esses grupos sem colocar em risco a estabilidade da região. Na recente reunião de cúpula em Brasília, por exemplo, Hugo Chávez parece ter viabilizado propostas como a da televisão Sul — cujo projeto brasileiro já está em andamento e que pode se transformar, com a adesão da Venezuela, em um instrumento de propaganda antiamericana na região — e o do banco de desenvolvimento Sul.
Mas o projeto de maior potencial político é o da união no setor de energia e petróleo. Esse é um projeto de longo prazo estrategicamente importantíssimo, e que pode criar problemas com os Estados Unidos. Há analistas que consideram a parceria com a Venezuela, por causa do petróleo, tão estratégica para o Brasil quanto a da Argentina. O delicado será tirar proveito dessas parcerias escapando das armadilhas de Chávez, que está sempre vendo nelas uma conotação ideológica.
A perspectiva para a segurança energética dos Estados Unidos, segundo alguns analistas, é incerta na melhor das hipóteses e problemática na pior. No mercado internacional do petróleo, existe a taxa de risco do terror, responsável pelo menos por 25% do atual preço, próximo de US$ 50 o barril e sem indicação de que vá baixar.
As reservas de gás e petróleo da América Latina podem ser essenciais nessa situação de demanda crescente e incerteza econômica. A Venezuela, considerada “uma outra Arábia Saudita”, é vista como uma das responsáveis pelos preços altos, devido à greve dos trabalhadores nas refinarias estatais da Petróleos da Venezuela (PDVSA). A greve retirou do mercado internacional cerca de 200 milhões de barris de óleo cru e gasolina.
Contraditório, o presidente Chávez defende a redução da produção, para manter os preços altos, mas anunciou recentemente que vai investir US$ 37 bilhões nos próximos cinco anos para dobrar a produção venezuelana para cinco milhões de barris por dia até 2009. A América Latina tem cerca de oito trilhões de metros cúbicos de gás, e nesse campo o Brasil é um parceiro importante. Como se vê, a estabilidade do mercado internacional de energia pode passar pela América Latina, o que aumenta o peso político da região.
O GLOBO
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