Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, maio 19, 2005

DEMÉTRIO MAGNOLI:O MST e a democracia

O guerreiro Josué conduziu o povo na marcha pelo deserto, em busca da Terra Prometida, como lembrou o presidente da Comissão Pastoral da Terra, dom Tomás Balduíno. Na narrativa oficial da Revolução Cubana, os guerrilheiros da Sierra Maestra marcharam pelo campo, cercando as cidades. Os dois mitos inspiraram a marcha do MST até Brasília, que portou um estandarte com a figura de Che Guevara e foi acompanhada por padres. Toda a identidade do MST está contida nessa simbologia sincrética, que se nutre das tradições do cristianismo original e de um comunismo extirpado da cidade, da fábrica e do operário. A terra, um bem da natureza, pertence ao povo de Deus -eis a mensagem.
A plataforma do MST organiza-se em torno da utopia de uma economia autárquica baseada na pequena produção camponesa. O latifúndio, a agricultura patronal, o agronegócio, as grandes empresas e a globalização aparecem como os inimigos do "capitalismo num só país", agrário e familiar, sonhado pelos sem-terra. A plataforma radical permanece no horizonte distante onde se oculta a Terra Prometida. Nos domínios da prática política, o MST pressiona pela aceleração dos assentamentos e por subsídios públicos aos assentados. Em outras palavras, exige apenas o aprofundamento de políticas agrárias conduzidas tanto pelo governo atual quanto por seu antecessor.
Do ponto de vista do MST, a luta pelos assentamentos seria o estopim da marcha do povo rumo à Terra Prometida. Do ponto de vista do governo, os assentamentos funcionam como política compensatória à opção preferencial pelo agronegócio. A experiência da última década evidencia que os assentamentos de reforma agrária, inscritos numa economia comandada pela globalização, geram favelas rurais dependentes de ajuda governamental. Essa ajuda tornou-se, indiretamente, a fonte principal do financiamento do próprio MST.
O MST, contudo, desempenha um papel crucial para a estabilidade da nossa democracia incompleta. A modernização capitalista do campo remove os fundamentos da vida de milhões de camponeses, atirando-os no caldeirão fervente das periferias urbanas e do emprego precário nas cidades e fazendas. O banditismo rural e o extremismo político são frutos comuns do ciclo da modernização e podem ser identificados, juntos ou separados, em contextos tão diversos como os da Sicília pós-Risorgimento, que foi o berço da máfia, do sertão nordestino do início do século 20, onde se difundiu o cangaço, ou do campo indígena peruano dos anos 80, no qual deitou raízes o Sendero Luminoso. Esses fenômenos estão ausentes do Brasil atual em virtude, antes de tudo, da presença do MST.
Rubens Ricupero registrou que a marcha dos sem-terra "se cumpre debaixo da mais implacável malevolência de quase toda a imprensa". De fato, o MST é a "bête-noire" da mídia, que se eriça inteira quando vislumbra uma ameaça à sacrossanta instituição da propriedade privada. O fogo de barragem da má-fé ofusca os fatos: o MST desvia para a redoma da política democrática o potencial de violência imanente à modernização acelerada, conservadora e excludente da agricultura brasileira.
Mas o MST não é imune à dissolução das esperanças depositadas pelo povo pobre no governo Lula. A organização dos sem-terra, que apóia o governo, enfrenta tensões e divisões. Seu eventual fracionamento seria comemorado pelos tolos e pelos incendiários.
folha de s paulo

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