Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, maio 05, 2005

DEMÉTRIO MAGNOLI:Forte apache Rio

 Quando Ernesto Geisel determinou a fusão dos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, uma garota poética ainda passeava nas areias de Ipanema, o torcedor do Flamengo namorava uma nega chamada Teresa e os morros da zona sul apenas ocultavam pontos do jogo do bicho. Hoje, 30 anos depois, uma lista eclética de ilustres cariocas de nascimento ou de adoção lidera a campanha Rio Cidade-Estado, pela recriação do Estado da Guanabara. Congraçados na repulsa ao populismo degenerado do clã Garotinho, os economistas Paulo Rabello de Castro e Maria Silvia Bastos Marques, o secretário municipal de Urbanismo Alfredo Sirkis e a vereadora Aspásia Camargo, ambos do PV, o senador pedetista Jefferson Péres e o cronista Arnaldo Jabor desenrolam uma tela de argumentos políticos, fiscais e administrativos que esconde as motivações profundas da campanha separatista.
Maria Silvia fala em "estancar e reverter a decadência da cidade". É um lugar-comum vazio: assim como São Paulo, a cidade do Rio perde participação na riqueza nacional à medida que os investimentos produtivos difundem-se no centro-sul e desenvolve-se o processo histórico de valorização do Brasil central. Na moldura da globalização, o Rio de Janeiro redefine suas relações com o resto do país e com o mundo, o que ocorre, em outros termos, também no caso de São Paulo. Mas os separatistas interpretam esse movimento complexo como "decadência". Não é casual que a mesma expressão seja usada, há décadas, para fazer referência às áreas centrais das metrópoles colonizadas pelo comércio popular e submetidas à desvalorização imobiliária.
Sirkis e Aspásia Camargo conferem à "decadência" do Rio de Janeiro um sentido de degradação ambiental. Jabor e Rabello de Castro pensam numa "decadência" social: o primeiro desespera-se diante dos morros "de onde descem hordas de vagabundos de bermuda para pescar cidadãos"; o segundo almeja um governador carioca com poder policial para "controlar as entradas e saídas da cidade". A frente separatista arrepia-se diante da ofensiva da "sujeira": esgotos a céu aberto, peixes mortos, favelas e marginais.
"Rio Cidade-Estado" não é sobre receitas, racionalidade ou planejamento. É sobre poder, polícia e pobreza. Os separatistas, herdeiros de Pereira Passos, bebem na velha fonte do higienismo social e tecem o projeto de uma cidadela protegida dos bárbaros de fora e de dentro. Sua "Cidade-Estado" de sonhos é a zona sul, com o "asfalto", mas sem o "morro". Como isso é impossível, escolheram as fronteiras do município do Rio de Janeiro.
O separatismo carioca aponta um dedo acusador para a confusa distribuição de prerrogativas federais, estaduais e municipais, com seu corolário de ineficiência e conflito. Contudo isso não distingue o Rio de Janeiro de nenhuma cidade do país. De fato, as nossas grandes aglomerações urbanas sofrem os efeitos do caos administrativo derivado da fragmentação de competências municipais. O Rio de Janeiro da vida real não é o município carioca, assim como a São Paulo de verdade abrange dezenas de municípios. A urbanização brasileira configurou "corredores metropolitanos", que carecem de expressão político-administrativa adequada, enquanto esvaziou de conteúdo o poder municipal. Mas esse debate não interessa à "república do Leblon": no fim das contas, alguém poderia concluir que a cidade do Rio estende-se da zona sul à Baixada Fluminense. Um horror!
FOLHA DE S.PAULO

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