O filósofo Jean Baudrillard é hoje um dos intelectuais franceses mais importantes e respeitados, e certamente o que tem mais destaque na mídia internacional, logo ele, um crítico do que chama de "sociedade espetáculo", onde todos sofreriam com a vontade de aparecer. Suas análises sobre a cultura de massa que produz realidades virtuais o tornaram uma estrela dessa sociedade, a ponto de seu livro "Simulacros e Simulação" aparecer no primeiro filme da trilogia Matrix, na cabeceira do hacker Neo.
Em Istambul, foi a grande estrela do simpósio organizado pela Academia da Latinidade no início do mês passado, fazendo uma análise aprofundada da sociedade moderna, especialmente sobre a presença hegemônica dos Estados Unidos e sua relação de dominação com o restante do mundo. Este texto de Baudrillard, que ele apresentou de surpresa em substituição ao que estava previamente combinado, é o mais político dele nos últimos tempos, e por isso merece ser revisitado, embora eu já tenha me referido a ele em colunas anteriores.
Para Baudrillard, a hegemonia é o estado supremo da dominação, e ao mesmo tempo sua fase terminal. Ele diz que se pode caracterizar a dominação pela relação mestre/escravo, uma relação com um potencial de alienação, de relação de força e de revolução, e também simbólica. Tudo muda com a emancipação do escravo e a interiorização do senhor pelo escravo emancipado, diz Baudrillard, que vê nesse ponto o começo da hegemonia.
Cultor das palavras, ele lembra que "Hegemon" significa aquele que comanda, que ordena, e não aquele que domina e que explora. "Nesse sentido, podemos dizer que a hegemonia põe fim à dominação", diz Baudrillard. "Nós, escravos ou trabalhadores emancipados, interiorizamos a ordem mundial e seu dispositivo operacional, de maneira que somos seus reféns, além de seus escravos".
Baudrillard diz que se a dominação clássica passava pela substituição autoritária de um sistema de valores positivos, e sua ostentação e defesa, a hegemonia contemporânea passa, ao contrário, por uma liquidação simbólica de todos os valores. Para ele, o que separa a dominação da hegemonia é a falência da realidade, a irrupção ultra-rápida de um princípio mundial de simulação, de virtualidade. Baudrillard está convencido de que o que chama de "hipocrisia ocidental" repousa sobre "a canibalização da realidade pelos signos".
A canibalização é uma das metáforas recorrentes de Baudrillard, e ele já havia se utilizado dela ao se referir à sociedade brasileira, no lançamento de um livro de seu amigo Candido Mendes, o secretário-geral da Academia da Latinidade. Uma sociedade, segundo Baudrillard, "capaz, através da música, da dança, de absorver e até mesmo de, finalmente, devorar os mestres". Ironicamente, ele diz que "o canibalismo é a forma última e mais sutil da hospitalidade".
Na conferência de Istambul ele utilizou o termo negativamente, no sentido de desmontar um automóvel e vender suas peças separadamente, que é o que acontece hoje, segundo ele, com as culturas hoje: são desmontadas e joga-se com seus valores como peças separadas. Para Baudrillard, face à hegemonia, todo pensamento crítico, toda tentativa de reação à opressão, à alienação, é virtualmente extinta. "Por uma gigantesca síndrome de Estocolmo, os alienados, os oprimidos, os colonizados se ajeitam ao lado do sistema do qual são reféns. Eles são anexados, no sentido literal, prisioneiros do 'nexus', da rede, conectados para o melhor e para o pior".
Quando o escravo emancipado interioriza o Mestre, a dominação se faz hegemonia, define Baudrillard, para ressaltar que, "ao mesmo tempo em que o escravo interioriza o Mestre, ele o devora, o canibaliza. Ao mesmo tempo em que a força absorve o negativo, ela é devorada por aquilo que absorveu". Quando a dominação se torna hegemônica, diz Baudrillard, a negatividade se faz terrorismo. Assim, a vitória da hegemonia é apenas aparente, e a absorção do negativo anuncia sua própria dissolução. Baudrillard chama isso de "a agonia da força, a agonia do poder".
Jean Baudrillard acha que com a eleição de Arnold Schwarzenegger para governador da Califórnia, estamos vivendo em plena farsa, onde a política não é mais que um jogo de ídolos e de fãs, um imenso passo na direção do fim do sistema representativo. Esta é a fatalidade da política atual , diz Baudrillard: aquele que participa do espetáculo morrerá para o espetáculo. E isso vale para o cidadão comum e para os políticos, adverte o filósofo.
Mas Baudrillard adverte também que não é possível concluir tão rapidamente que a degradação dos hábitos políticos americanos significa o declínio de sua força. Para ele, há por trás dessa farsa "uma estratégia política de grande envergadura".
Elegendo Schwarzenegger, ou ainda na eleição fabricada de Bush em 2000, "com uma paródia alucinante de todos os sistemas de representação, a América se vinga à sua maneira do desprezo simbólico de que é alvo".
Baudrillard diz que essa "forma extrema de profanação de valores", e a "obscenidade radical" é o que fascina todo mundo. Ele diz que a situação política americana, de "vulgaridade fenomenal, um universo político televisual, enfim atingindo o grau zero da cultura", é também o segredo da hegemonia mundial dos Estados Unidos.
O desafio da América, para Baudrillard, "é o de uma simulação desesperada, de uma farsa que ela impõe ao resto do mundo, com o simulacro desesperado da força militar. A carnavalização da força", define. E Baudrillard, com o pessimismo que lhe é peculiar, decreta : se a história que se repete se torna farsa, a farsa que se repete acaba virando História.
O GLOBO
Entrevista:O Estado inteligente
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domingo, maio 01, 2005
Merval Pereira:Farsa vira História
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