Uma análise do tortuoso caminho
de um samba-enredo campeão,
até chegar ao ponto que queria
A vencedora do Carnaval de São Paulo foi a escola de samba Império de Casa Verde. O enredo tinha por título Brasil, Se Deus É por Nós, Quem Está contra Nós? Acompanhemos a letra do samba, de autoria de Waguinho, Carlos Junior e Raphael. O começo é assim:
"Desbravando o continente
Voando numa nave espacial
Vejo o fim do então primeiro mundo
O medo do futuro é universal".
A palavra mais intrigante do trecho é o "então" anteposto à expressão "primeiro mundo". Quereria dizer que o tal "primeiro mundo" não existe mais? E, em caso positivo, em que sentido: o de que o "primeiro mundo" não ocupa mais a honrosa posição de primeiro? Ou de que não existe mais de vez, quer dizer: desapareceu? Quando se lê o verso inteiro e se percebe que se descortina o "fim" do "então primeiro mundo", as mesmas dificuldades se multiplicam. É de dar nó no labor do pobre exegeta. Fujamos para o verso seguinte: "O medo do futuro é universal". Se há medo do futuro, é porque há futuro. É um consolo, mas o fato é que o medo se espraia universalmente. O cenário, contemplado deste privilegiado ponto de observação que é uma nave espacial, é sombrio, eis o que se pode concluir sem medo de errar. Tal conclusão é corroborada pelos versos que vêm a seguir:
"É nova era
O ser humano se transforma em munição (...)
Vaca louca adoidado, até frango tá gripado
Veja só que ironia, o alerta é geral".
Evidencia-se aqui a intenção de realçar o desatino que caracteriza a vida contemporânea, marcada não só por guerras, mas também por bizarras epidemias, como a da vaca louca e a da gripe do frango. Vivemos a ante-sala do apocalipse. O ensaio geral do caos. O mundo, eis a triste realidade, está perdido. Ou não? Talvez não. O estribilho seguinte anuncia uma exceção, nesse cenário dantesco: "Sou mais você, Brasil / Ó pátria mãe gentil / Esculturada por Nosso Senhor / Terra do samba e do amor". O samba prossegue enumerando as qualidades de nossa gente:
"É lindo ver meu povo brasileiro
Otimista e guerreiro
Nunca perde a esperança
Sempre se virando como pode
Quem não pode se sacode
Em busca do seu ideal".
Neste ponto, a letra dá uma virada surpreendente. "Por falar em sonhos e conquistas" é o verso seguinte, e é notável como os autores recorreram a esse coloquial "por falar em" para introduzir um novo e decisivo elemento no enredo – uma pessoa descrita como um "nobre idealista, revolucionário imperial". Releve-se o oximoro, a figura que junta duas palavras inconciliáveis, contido na expressão "revolucionário imperial". Fixemo-nos no que vem a seguir, uma homenagem póstuma ao "idealista" em questão:
"Saudade, vá de encontro ao infinito
Nesse imenso azul e branco
Que hoje serve de manto
Pra esse ser iluminado
Que ao lado de Deus
Se faz presente na avenida
Eterna estrela dos meus carnavais
Valeu, descanse em paz".
Não bastasse o samba, o homenageado mereceu uma enorme escultura, no último carro alegórico da escola. Quem era? Quem? O "importante empresário", como diz o site da escola, Francisco Plumari Júnior. Mais conhecido como "Chico da Ronda", Plumari era tido como um dos maiorais do jogo do bicho em São Paulo, até ser assassinado num posto de gasolina, em 2003. Ele foi fundador, presidente e patrocinador da Império de Casa Verde, que hoje tem seu filho como presidente e a filha como vice. No samba, ele triunfa sobre um mundo dilacerado e destaca-se como expoente da ilha de bem-aventurança chamada Brasil. Na vida real, morreu miseravelmente, enquanto trocava os pneus do carro, furados por objetos postos no asfalto para forçá-lo a parar.
Nos desfiles do Rio de Janeiro, o Salgueiro homenageou os falecidos bicheiros Miro e Maninho, pai e filho, cujas estampas apareciam nas camisetas usadas por uma de suas alas, e o presidente da Mocidade Independente de Padre Miguel honrou, num discurso, o foragido da Justiça César Andrade, sobrinho e sucessor do famoso Castor de Andrade. O deputado Antonio Carlos Biscaia (PT-RJ) viu em ambas as atitudes "apologia ao crime" e anunciou providências. Não se duvida da têmpera de Biscaia, que como procurador se notabilizou no combate aos chefões do bicho. Mas o mais provável é que continuem a prevalecer vozes como a do carnavalesco da Império de Casa Verde, Victor Santos, que gritava, em comemoração à vitória: "Viva os bicheiros". E repetia, e repetia: "Viva os bicheiros".